Um Coração Puro. A Transformação do Desejo

AS ÉPOCAS DO CORAÇÃO

Um Coração Puro. A Transformação do Desejo

 

 

 

 

 John Welch, O. Carm.

 

A união com Deus

Frequentemente a espiritualidade Carmelita tem sido apresentada como uma “alta” e refinada espiritualidade só para alguns eleitos. Também é apresentada, às vezes, como feita de uniões extáticas sublimes ou de sofrimentos dramáticos, mais intensos do que os normais problemas da vida. Vem-me à mente a imagem da estátua de Bernini da “transverberação” de Teresa, da sua visão de ser atravessada por uma flecha de ouro, acompanhada de êxtase e dor.

O austero desenho que João da Cruz faz de Cristo crucificado, desde a perspectiva do Pai que olha do alto o Seu Filho na cruz, evoca a infatigável determinação do santo. Ou pode-se pensar no desenho de João que mostra o caminho da subida do Monte Carmelo. Os caminhos das possessões materiais e espirituais não chegam ao cimo, só o caminho do meio, o dos nadas, é que conduz ao cimo onde Deus é nada e tudo. O Carmelo parece representar uma viagem heróica, mesmo épica, para Deus, uma caminhada só ao alcance de montanhistas experimentados que se atrevam a escalar a sua altura.

Se a subida ao Monte Carmelo é uma façanha épica, que fazemos aqui, nós, simples Carmelitas? Temos às vezes a sensação de sermos guardiões duma tradição que realmente nunca experimentámos? Sentimos que frequentemente estamos a narrar acontecimentos em segunda mão acerca da terra do Carmelo, sem nunca lá estar? Como resultado da nossa transformação em Deus, “tornamo-nos Deus”, afirma destemidamente João da Cruz. “Com que pouca frequência se celebra esta divinização na nossa tradição”?

 Um despertar

 Para além de viajar na noite ou subir uma montanha, João utiliza outra imagem para descrever a viagem. Escreve que “o centro da alma é Deus” e que a nossa viagem na vida é para este centro. Mas em lugar de conceber um centro distante que requer uma árdua viagem, João diz que basta um só grau de amor para estarmos nesse centro. Basta um só grau de desejo, de anelo, de esperança, ainda que seja difícil expressá-los, e estamos naquele centro.

A teologia de hoje reforça esta observação de João. Estritamente falando não existe o mundo natural. O que existe desde o princípio é um mundo cheio de graça, e a criação e a redenção caminham juntas. Por outras palavras, as nossas vidas estão impregnadas da presença amorosa, vivificante e sanadora de Deus, quer dizer, da graça incriada. Em lugar de procurar um centro escondido e distante, esse centro aproximou-se de nós.

Então, o que é a viagem? A viagem - diz João - é entrar mais profundamente em Deus. Apesar de estarmos sempre em união com Ele, a divinização é um processo contínuo. Deste modo, a meta descrita pelos autores Carmelitas vai-se realizando em cada alma que não deseja outra coisa.

“E agora despertas no meu coração, onde em segredo tens sempre morado”, escreveu João da Cruz. Mas no seu comentário corrige-se a si mesmo e diz: “Não foste ‘Tu’ quem despertou, mas fui eu quem despertou para o amor sempre presente e continuamente oferecido”. Este despertar, e a mudança que se produz na vida da pessoa, é a chamada do Carmelo. Podemos chegar à conclusão de que muitos, muitos Carmelitas e tantos outros chegaram ao “cimo” do Carmelo. E chega-se ao cimo, não quando uma pessoa cai em êxtase na igreja, mas quando a sua vida expressa cada vez mais a vontade de Deus.

Querer o que Deus quer

Teresa de Ávila escreveu que a finalidade da oração é o de nos conformar com a vontade de Deus. A pessoa orante está cada vez mais em união com Deus e esta união expressa-se no querer o que Deus quer. Nós não nos tornamos mais fortes através da ascese, lutando para submeter a nossa vontade à vontade de Deus. Não, o amor de Deus convida-nos à transformação do nosso desejo para que desejemos o que Deus deseja: queremos o que Deus quer. Diz João, “o que tu queres que peça, eu peço, e o que não queres, eu não quero; nem posso, nem me passa pelo pensamento querer”.

A divinização é a gradual participação no conhecimento e no amor de Deus. O peregrino fica de tal modo transformado que todos os seus modos de viver se convertem em expressão da vontade de Deus. Se podemos interpretar o que Jesus disse, que a vontade de Deus é o bem-estar da humanidade, então a pessoa orante vive cada vez mais nesse bem-estar. Por outras palavras, a pessoa transformada e divinizada vive de uma forma que coopera com o Reino de Deus, presente e futuro.

Estas pessoas são difíceis de identificar. O Mestre Eickart previne-nos que uma pessoa que vive a partir do seu centro, vive a vontade de Deus de um modo natural e afirma que enquanto os outros jejuam, eles comem; enquanto os outros estão em vigília, eles dormem; enquanto os outros oram, eles estão em silêncio. Depois de tudo, para que serve a vigília, a oração, o jejum, se se vive já no centro da alma, que é Deus? Naturalmente que se trata de um exagero para fazer passar uma ideia, já que o nosso peregrinar nunca termina deste lado da morte. A ideia, creio, é a absoluta humanização da pessoa transformada.

Teresa diz-nos que estas pessoas não estão continuamente conscientes da sua vida espiritual. A interioridade converte-se cada vez menos num ponto de referência. Nem Deus é mais uma das suas preocupações, porque do modo como vivem expressam a sua relação com Ele. A meta nunca foi chegar a ser um contemplativo, ou um santo, ou ter uma vida espiritual. A meta foi sempre querer o que Deus quer numa consonância de desejo.

Na conclusão da Regra Carmelita o seu redactor, Alberto, Patriarca de Jerusalém, escreve: “Escrevi estas breves indicações com o propósito de estabelecer uma fórmula de vida, segundo a qual havereis de vos conduzir. Se alguém está disposto a dar mais, o próprio Senhor, quando voltar, o recompensará”. Kees Waaijmaan, do Instituto Tito Brandsma de Nimega, vê nesta afirmação uma clara alusão à passagem do Bom Samaritano. O Carmelita assume o papel do estalajadeiro. Os seus planos e a ordem da sua casa são alterados quando um forasteiro traz um homem espancado para que cuide dele. O forasteiro pede ao estalajadeiro que cuide daquele homem espancado e se gastar mais, isto é, se fizer mais, o forasteiro pagar-lhe-á quando voltar.

O forasteiro, Cristo, pede ao Carmelita que cuide do Seu povo durante a sua ausência. Ainda que o hóspede não seja esperado e a ordem da casa seja alterada, o estalajadeiro ocupa-se obedientemente do homem ferido, talvez sem se envolver emocional ou pessoalmente, e com pouquíssima satisfação. Kees conclui que toda a entrega autêntica é fundamentalmente obscura. A Presença encontrada no mais fundo do coração dos Carmelitas é uma noite que guia, uma chama que cura, uma ausência reveladora.

Os frades não têm necessidade de se desculparem por não serem autênticos Carmelitas. A nossa espiritualidade não trata de um ascetismo heróico, mas antes do amor de Deus que tudo conquista e toca cada coração, ferindo-o; caso contrário não estaríamos aqui.

Assumindo que no cimo do Carmelo sentimo-nos como que em casa, ou melhor dito, nos braços de Deus, e ao mesmo tempo sempre necessitados da Sua misericórdia, o nosso ministério consiste em pôr à disposição dos outros a tradição do Carmelo para ajudar os nossos irmãos e irmãs a “ver” e a “ouvir” a presença de Deus na própria vida.

Para levar esta chama aos outros, parece correcto que primeiro a tenhamos aceite na nossa vida. Se escutarmos o nosso coração, conheceremos o coração das pessoas com quem vivemos e desempenhamos o nosso ministério. Tiremos o pó de qualquer vocação Carmelita e encontraremos um braseiro que espera converter-se numa chama que anseia a totalidade, a paz, a segurança, o gozo, a unidade e que encontra a sua melhor expressão no serviço aos irmãos e às irmãs. É esta a razão por que viemos aqui. Para isso estamos aqui.

 Resumo 

“Entrar no Carmelo” não significa simplesmente entrar num edifício, unir-se a uma comunidade e assumir um ministério, seja contemplativo ou apostólico. É também isto, certamente, mas, “entrar no Carmelo”, é também entrar num drama que acontece no mais fundo de cada vida humana. Esse drama do encontro do espírito humano com o Espírito de Deus é essencialmente indescritível.

Os Carmelitas são exploradores de uma região interior de intimidade com Deus, um lugar do espírito humano onde o Mistério lhe fala. O Carmelo honra essa primeira e privilegiada relação entre a criatura e o Criador. Para captar a intimidade deste encontro, a mística Carmelita usou imagens esponsais e frequentemente recorreu à história de amor do Cântico dos Cânticos. A paisagem do Cântico começa a dar forma à “terra do Carmelo”.

Teresa de Ávila diz que o propósito da oração é a conformidade com a vontade de Deus. Nesta relação os desejos do peregrino são transformados de tal maneira, para que o cristão expresse cada vez mais na sua vida os desejos que se conformam com os desejos de Deus. Se podemos dizer que a finalidade do amor de Deus é o bem-estar da humanidade, então o cristão transformado vive de uma maneira que naturalmente coopera com o Reino de Deus.

Perguntas para reflexão

  1. Segundo a minha experiência, quem são as pessoas verdadeiramente santas? Como são?
  2. Entendo a vida espiritual como uma ascese heróica ou como um despertar para um amor que se dá a partir do próprio centro do meu ser?
  3. Estou disposto a acreditar, de um modo prático, que o amor de Deus é gratuito, impossível ser ganho? Há modos subtis através dos quais procuro assegurar a minha valia?
  4. “Descansai, tudo está feito”, disse um teólogo da graça. Que pode significar esta frase?

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