As épocas do coração - A dinâmica espiritual da vida carmelita

AS ÉPOCAS DO CORAÇÃO

A DINÂMICA ESPIRITUAL DA VIDA CARMELITA

 

 

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John Welch, O. Carm.

 

1. Introdução

 

A tradição Carmelita pode ser entendida como um comentário de oitocentos anos ao Cântico dos Cânticos. Esta antiga história de amor da Escritura hebraica é uma narração simples que fundamenta e capta a experiência de numerosíssimos Carmelitas. “A voz do meu amado! Ei-lo que chega, correndo pelos montes, saltando sobre as colinas” (Ct 2, 8). Pensando que procuravam um Deus difícil de se deixar encontrar, voltavam da sua busca com a convicção de que Deus os acompanhara com o Seu amor ao longo de todo o caminho. A ânsia profunda do coração do Carmelita revelou-se, deste modo, como um convite: “Levanta-te! Anda, vem daí, ó minha bela amada!” (Ct 2, 10).

 

Os escritores Carmelitas recorreram frequentemente à apaixonante história de amor do Cântico dos Cânticos para encontrar as palavras mais adequadas para expressar a sua própria experiência. S. João da Cruz para compor o seu poema de amor Cântico Espiritual, tomou do Cântico a história e as imagens. Teresa de Ávila escreveu um comentário sobre o Cântico. E Teresa de Lisieux identificou-se com esta história mas, ao contrário da Amada do Cântico que espera o Amado, ela disse que sempre O havia encontrado no seu próprio leito.

 

Os versículos do Cântico aparecem, consciente ou inconscientemente, nas histórias Carmelitas. Os Carmelitas contam muitas histórias, mas a história da Amada que espera impacientemente a chegada do Amado aparece como tema comum. A sua união amorosa e a retirada para a solidão das pastagens das altas montanhas encontra expressões equivalentes nas histórias dos Carmelitas. João da Cruz encontrou nas palavras de Oseias uma expressão perfeita para descrever a sua própria experiência pessoal: “Por isso vou seduzi-la; levá-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração” (Os 2, 16). Respondendo ao convite de uma Presença misteriosa presente na vida dos que se encontravam em procura, os Carmelitas foram arrastados para uma relação que os transformará para sempre: “Eis que o Inverno já passou, a chuva parou e foi-se embora; despontam as flores na terra, chegou o tempo das canções” (Ct 2, 11-12).

 

Os temas fundamentais da espiritualidade Carmelita aparecem nesta história do coração humano, revelando dinamismos espirituais que são a essência da vida Carmelita e que poderemos definir como As épocas do coração. A finalidade deste tema é analisar estas mesmas épocas do coração com o propósito de identificar a dinâmica espiritual da vida Carmelita.

 

Há cinco épocas descritas neste tema:
  • um coração anelante (o nosso desejo de Deus);
  • um coração escravizado (o culto de falsos deuses);
  • um coração que escuta (a oração contemplativa);
  • um coração preocupado (o trágico na vida);
  • um coração puro (a transformação do desejo).

Estas épocas do coração e a resposta que o Carmelo lhes dá estão entre as realidades que originaram a tradição Carmelita, estabelecendo-as como um dos maiores caminhos espirituais para os cristãos.

2. Um coração anelante. O nosso desejo de Deus

 

2.1. Escolhemos tudo

 

“O nosso coração anda inquieto”, escreveu Santo Agostinho, e esta continua a ser uma verdade fundamental da condição humana. A inquietação humana, o desejo humano, o anelo humano, parece que nunca nenhum deles encontrará alguma vez plena e definitiva satisfação. Podemos ver na imagem de um bebé que começa a gatinhar e a explorar o que o rodeia a expressão da inquietação humana. A viagem dos primeiros Carmelitas que deixaram as suas casas para se congregarem num vale do Monte Carmelo foi motivada por este mesmo desejo. Na verdade somos peregrinos.


Nós, seres humanos, somos sempre insatisfeitos porque, como gostava de dizer Santa Teresa de Lisieux, escolhemos tudo. E não descansaremos até o conseguir. A tradição Carmelita reconhece esta fome no coração humano, porque a nossa natureza é mesmo assim. Fomos feitos para procurar e explorar, anelar e sofrer, até que o coração finalmente encontre algo ou alguém que responda ao mais íntimo dos seus desejos e encontre alimento suficiente para satisfazer a sua fome. Chamamos Deus a este alimento, a esta realização, a esta meta do desejo humano. Durante oitocentos anos os Carmelitas, com todas as suas forças, têm perseguido intencionalmente esta realização, misteriosa e difícil de encontrar. “Desejava viver, - escreveu Santa Teresa de Ávila - e não havia ninguém que me desse vida”.

 

Estamos profundamente convictos de que todo o ser humano se encontra nesta procura. Podemos assumir isto: cada estudante dos nossos colégios, cada membro das nossas paróquias, cada peregrino dos nossos santuários, cada candidato aos nossos seminários, está aberto ao mistério transcendente a que chamamos Deus. Por algum tempo e muitas vezes o desejo pode ser negado, a fome pode ser temporariamente satisfeita, o anelo afogado, aturdido, debilitado. Mas sabemos que está aí e que de um momento para o outro aparecerá de um modo ou de outro. A nossa tradição tem a força, a linguagem e as imagens que nos ajudam a iluminar o que os homens e as mulheres experimentam no mais fundo do seu ser.

A tradição Carmelita tenta dar um nome a esta fome, exprimir por palavras este desejo e identificar em Deus a meta última desta caminhada. O coração humano necessita sempre da clarificação dos seus desejos. O Carmelo sempre quis o mesmo e está pronto, em cada momento, a caminhar e a acompanhar os que se encontram neste caminho. Não podemos satisfazer a sua fome, mas podemos ajudá-los a encontrar as palavras para a exprimir e saber para onde aponta. Podemos fazê-lo, e fizemo-lo na arte, na poesia, na música, no aconselhamento e no ensino, na simples escuta e compreensão. E podemos avisar as pessoas que, talvez, a um certo momento, as palavras faltarão, ficando somente o desejo em si mesmo.

Um autor contemporâneo diz que um problema muito sério da espiritualidade actual é a ingenuidade acerca do desejo ou da energia que nos move. O anelo espiritual, que nos vem de Deus, e que pode expressar-se de diversas maneiras, incluindo a energia criativa e sexual, pode ser perigoso se não for atentamente orientado. Tratamos com ingenuidade este desejo profundo que se encontra dentro de nós, e não estamos muito atentos ao perigo que pode comportar. Sem uma atitude de reverência para com esta energia e aos modos de aceder até ela e mantê-la contida, muitos adultos movem-se entre a alienação deste fogo e, por isso, vivem na depressão, ou permitem-se ser consumidos por ela e vivem num estado de euforia.

A depressão, neste sentido, significa a incapacidade de desfrutar a vida como uma criança, de sentir o verdadeiro gozo. A euforia refere-se à nossa tendência em identificar-nos por vezes com este fogo, com este poder divino. “Em geral estamos tão cheios de nós mesmos que somos uma ameaça para as nossas famílias, amigos, comunidades e até para nós próprios”. Por sermos incapazes de orientar esta energia ou nos sentimos interiormente mortos ou, pelo contrário, somos hiper-activos e inquietos.

 

“A espiritualidade consiste em identificar os modos convenientes, a disciplina, através dos quais podemos aceder a essa energia e de como a podemos conter” (Ronald Rolheiser).
 

2.2. Os desejos dos Carmelita

Este dilema encontrará a sua compreensão nos santos do Carmelo. No encontro com a chama que ardia profundamente na sua humanidade, os santos deixaram-se abrasar e purificar por ela. Teresa de Ávila entende-a como a água que Jesus ofereceu à samaritana. Mais fogo do que água, esta chama aumenta o desejo. “E com que sede se deseja ter esta sede!”. João da Cruz começa o seu poema Cântico Espiritual com uma queixa: “Onde é que tu, Amado, te escondeste, deixando-me em gemido? Fugiste como o veado havendo-me ferido; clamando eu fui por ti; tinhas partido”! João da Cruz compreende a nossa humanidade como o despertar no meio de uma história de amor. Alguém tocou o nosso coração, ferindo-o, fazendo-o penar de um desejo de plenitude. Quem nos fez isto e para onde foi? Estas perguntas perseguem cada ser humano ao longo da sua caminhada e impulsionam cada passo, desde o gatinhar do bebé até à peregrinação de um Papa à Terra Santa, incluindo toda a actividade humana que se desenrola entre estes dois extremos.

 

João da Cruz diz que os nossos desejos são como os meninos. Se lhes prestamos atenção acalmam-se por algum tempo, mas de imediato voltam a despertar e rompem com o seu ruído a paz do lar. Ou são também como um dia longamente desejado para estar com a pessoa amada, mas esse dia resulta numa grande desilusão. A ideia joanina acerca da nossa humanidade é a de uma fome que só Deus pode satisfazer.

 

Teresa de Lisieux encontrou os seus desejos mais profundos contidos na imagem do céu: o céu como o Domingo sem ocaso, o retiro eterno, a margem eterna. A margem eterna é uma expressão particularmente feliz do desejo ardente do seu coração. Da vida escolhia tudo, e esta imagem representava para ela a expressão de tudo o que desejava. Mas não há imagem ou conceito que possa expressar exactamente os seus desejos ardentes: “Sinto quão impotente sou para expressar em linguagem humana os segredos do céu, e depois de escrever página após página penso que ainda não comecei. Há tantos horizontes diferentes, tantos matizes de infinita variedade...”.

 

Esforçamo-nos por nos prender a isto ou àquilo, seduzidos por uma promessa de realização, mas ficamos sempre decepcionados. Usando a imagem de Teresinha, chegamos a muitas margens mas não nos damos conta de que não são a margem eterna.

 

O espírito e a psique habitam na mesma região da mente. O espírito existente em nós é o dinamismo que nos impulsiona para a plenitude do ser, para conhecer tudo, amar tudo, e ser uma só coisa com tudo. A psique expressa estes desejos com imagens primordiais tiradas do corpo e do mundo. A psique liga os órgãos do corpo e as suas raízes cósmicas, com a transcendência do espírito e a sua aspiração à plenitude. Imagens de esperança, tal como a “margem eterna”, são expressão tanto da psique como do espírito.

 

As imagens da psique são agitadas pelo desejo ardente do espírito. Elas podem mover e expressar as nossas ânsias de paz e de justiça, podem-nos abrir a um arrependimento profundo, podem arrojar luz sobre a nossa existência e iluminar o nosso caminho, podem prover-nos de cenários de esperança sobre o nosso futuro depois desta vida, como fez Teresa de Lisieux. Mas nenhuma delas é adequada para expressar de modo definitivo e completo os nossos desejos mais profundos, sobretudo o desejo de que somos. A nossa mais profunda aspiração de conhecer e amar, de ser uma só coisa com tudo o que é, nunca encontra realização. As nossas fomes mais profundas nunca encontram alimento suficiente nesta vida. Damos voz ao que queremos mas, na realidade, o que queremos?

 

O teólogo Bernard Lonergan acreditava que se seguirmos o caminho dos nosso desejos mais profundos, expressando-os sem medo, confrontando-nos com eles e respondendo ao chamamento que dirigem à nossa vida, poderemos experimentar a conversão. O nosso querer e desejos serão purificados e transformados na medida em que desejarmos o que Deus deseja numa consonância de desejo. Que desejam os homens e as mulheres das nossas paróquias, casas de retiro, direcção espiritual? Tudo! Contai com isso e dai-lho.


Dizemos a nós mesmos e aos outros que a fome interior é tão profunda e tão poderosa que, reconhecida ou não, só Deus é o alimento que a pode saciar. Quando Jesus pregava o Reino de Deus presente e que há-de vir, referia-se precisamente aos desejos profundos, ao santo anelo abrigado no coração dos seus ouvintes.

 

Em 24 de Março de 2000 celebrou-se o vigésimo aniversário do assassinato do Arcebispo salvadorenho Óscar Romero, morto enquanto celebrava a Eucaristia numa capela Carmelita. A conversão de Romero de clérigo tradicional e profissional, dotado de uma piedade sincera mas abstracta, em corajoso e franco pastor do seu povo, foi possível porque viu as ânsias profundas no rosto do seu povo. Enquanto celebrava os funerais das pessoas que tinham sido assassinadas pelos poderosos e lia os nomes das desaparecidas, deu-se conta de que era seu dever dar a sua voz aos “sem-voz”, exprimir as suas aspiração reprimidas e encarnar com a sua presença corajosa o santo anseio do povo salvadorenho.

 

Escutar as pessoas, expressar o seu anseio profundo e ajudá-las a verbalizá-lo, faz parte do ministério Carmelita. Os primeiros Carmelitas estabeleceram no seu pequeno vale as condições para porem ordem aos seus múltiplos desejos. Cada um habitava numa cela e estas rodeavam a capela onde diariamente recordavam o quanto Deus os desejava. Teresa de Ávila fundou comunidades de clausura onde as monjas pudessem abrir-se completamente à força dos seus desejos numa afectuosa amizade com o Senhor e entre si. Ela animou-as para que se deixassem seduzir pela atracção das suas profundidades enquanto os seus desejos fragmentados iam encontrando a cura e a reorientação. Tanto ela como Teresa do Menino Jesus estavam firmemente convictas de que se Deus nos tinha dado esses desejos, Ele mesmo os levaria à sua realização. Nós não somos paixão sem sentido.

 

2.3. Resumo

A tradição Carmelita reconhece que há no coração humano uma fome muito profunda de Deus. Este desejo e esta ânsia impulsionam-nos ao longo de toda a nossa vida a procurar a realização das aspirações do nosso coração. Esta corrente profunda de desejo na nossa vida, é devida ao facto de que Deus nos desejou primeiro. Deus, o primeiro contemplativo, ao contemplar-nos viu que éramos atractivos e encantadores para Si. A tradição Carmelita não fala do aniquilamento do desejo mas da transformação dos desejos, para que desejemos cada vez mais o que Deus deseja em consonância de desejo. Como Teresa de Ávila dizia em simples palavras: “Quero o que Tu queres”.

 

2.4. Perguntas para reflexão

  1. Como experimento este desejo, esta ânsia, esta fome, que no fundo é Deus? Estou consciente de um mal-estar, de uma inquietação fundamental? Encontro na minha vida um lugar onde se expresse este desejo?
  2. O que é que na vida me dá alegria e prazer mais profundos? Em que momento me sinto mais criativo e mais vivo? Procuro rejeitar, ignorar, suprimir o fogo que há dentro de mim ou procuro formas de o honrar?
  3. Como expresso as minhas aspirações mais profundas? Que actividades as encarnam e me faz desejar a sua definitiva e última realização?
  4. Como é que as pessoas com quem trabalho expressam os seus anseios mais profundos, os desejos do seu coração?
  5. Como é que eu, juntamente com elas, procuro encontrar o modo de exprimir por palavras estes desejos e os celebrar como um dom que aponta para Deus?
  6.  

    Continua

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3. Um coração escravizado. O culto de falsos deuses

3.1. Convivendo com os ídolos

Um segundo tema permanente na espiritualidade do Carmelo é a necessidade de decidir a que Deus seguir. A nossa tradição nasceu no Monte Carmelo, lugar da luta entre os seguidores de Yahvé e os de Baal. Elias exortou o seu povo a fazer um escolha clara e definitiva do único e verdadeiro Deus. Tanto a comunidade Carmelita como cada Carmelita individualmente tiveram de lutar continuamente contra as forças da desintegração e fragmentação provocadas pelo seguimento dos ídolos.

 

Nicolau Gálico na carta Ignea Saggita dirigida a toda a Ordem, acusava os seus membros de terem perdido o caminho ao emigrarem do deserto para a cidade e se acostumavam às atracções que ela oferecia. Acusava-os de seguir os seus próprios desejos desordenados sob a capa da necessidade de levar aos outros o seu próprio serviço. As reformas de Albi, Mântua, João Soreth, Teresa de Ávila e Turena serviram para recordar continuamente aos Carmelitas que deviam ter sempre um só Deus e servi-Lo de todo o coração.

 

Os santos da nossa tradição sabiam quão difícil é encontrar e seguir o Deus verdadeiro e distingui-lo de tantos falsos deuses que nos são oferecidos. Esta Presença que se alberga no mais fundo de nós mesmos encontra-se também no mundo que nos cerca. No Cântico Espiritual, João da Cruz diz: “E todos quantos vagam, de Ti me vão mil graças relatando...”. Teresa de Ávila aconselhava: “Deixai que as criaturas vos falem do seu criador”.

 

A tendência humana a exagerar leva a pedir à criação para que seja mais do que realmente é. Frequentemente colocamos os desejos do nosso coração nalguma parte da criação de Deus, pedindo-lhe que realize o que procuramos. Pedimos a uma parte da criação para que seja o incriado. Escolhemos um bem e pedimos-lhe que se converta no Bem.

 

O coração, cansado de peregrinar, procura assentar e construir uma casa, recusando-se a avançar para diante. Contenta-se com os deuses menores, encontrando neles uma espécie de alegria, paz, identidade, segurança ou outro tipo de conforto para os seus desejos. Este consolo temporário mascara um problema espiritual, como também um problema de desenvolvimento humano. João da Cruz estava convencido de que a personalidade de uma pessoa começa a tornar-se desequilibrada quando a pessoa se centra em algo ou alguém que não seja Deus.

 

Estas “ataduras” criam situações de morte. A qualquer coisa ou pessoa a quem peça que seja o meu deus e realize os meus desejos mais profundos, não pode resistir a esta minha expectativa. Sob esta pressão, o ídolo começará a desmoronar-se e peço-lhe que seja o meu “tudo”. E porque não podemos crescer mais além dos nossos deuses, um deus menor significa um ser humano menor. Consequentemente, aquilo a que estou “atado” morre sob o peso das minhas necessidades e eu com ele, porque os meus desejos mais profundos não encontram nada nem ninguém que condiga com a sua intensidade.

 

3.2. Relação desordenada

 Quando a nossa tradição fala das “ataduras”, isto não quer dizer que a relação com o mundo seja um problema. Algumas vezes, certamente, o mundo é um problema. Mas temos que nos relacionar com o único mundo que temos. A relação com o mundo não é o problema fundamental das “ataduras”, mas o modo como nos relacionamos com ele é que se converte no problema. Os nossos santos falam a pessoas adultas cujos corações foram escravizados por alguém ou alguma coisa que ocupou o lugar de Deus. Não é necessariamente esta pessoa ou esta coisa o problema, mas antes a maneira como nos relacionamos com elas, o modo desordenada como expressamos o nosso desejo ou aspiração.

 

É irrelevante se o ídolo é valioso ou não. A relação é o factor fundamental. Um incidente na vida de João da Cruz pode ser ilustrativo. Um dos seus frades tinha uma simples cruz feita de madeira e João tirou-lha. O frade pouco mais tinha, e a cruz não tinha nenhum valor, mas João discerniu que o frade estava apegado a essa cruz tosca de um modo desordenado. Tinha-se convertido evidentemente em qualquer coisa de intocável, o que indicava que a relação do frade com a sua cruz era desviada.

 

João observou que ainda que o pássaro esteja atado por uma corda ou por um fio, mesmo assim está atado. O coração está escravizado pelos seus próprios ídolos e já não é livre para escutar o convite do Amado. João identifica uma pessoa agarrada aos ídolos como uma pessoa pobremente sintonizada com Deus. João estava convencido de que uma pessoa se converte naquilo que ama. Este falso deus fomentará um falso “eu”.

 

É importante realçar que a tradição Carmelita não é partidária do abandono do mundo, mas antes a de manter uma correcta relação com o mundo criado por Deus. Sem uma correcta interpretação, poderia pensar-se que o Carmelo vê no envolvimento com o mundo um obstáculo para a relação com Deus. Pelo contrário, é no mundo criado por Deus onde nos encontramos com Ele.

 

A tradição Carmelita dirige-se a pessoas cujos corações foram ao mundo procurar a sua realização e nesta procura dispersaram-se e dividiram-se. Isto acontece quando o cristão coloca os desejos do seu coração nas posses e nas relações que não podem encher a intensidade desses desejos e começa então a experimentar a paralisia na própria vida: e esta é uma situação deteriorante. Este mundo ao qual o cristão procura agarrar-se freneticamente, exprime-lhe a vida através de expectativas. E o cristão ajusta-se aos ídolos e não se transforma em Deus.

 

Um tema dos nossos dias que se relaciona com o tema tradicional da “atadura” é o da dependência. Todos nos damos conta, de um modo ou de outro, de que somos dependentes de alguma coisa ou de alguém, e que só a graça de Deus nos pode libertar das nossas dependências. Pode-se ser dependente de coisas obviamente destrutivas, mas pode-se ser também dependente da Igreja, do Papa, das práticas religiosas, até mesmo dependente do Carmelo e de Deus, mas desse deus criado por nós próprios.

 

Por outras palavras, podemos pedir, quer individualmente quer como povo, a uma parte da criação de Deus que seja incriada, que se converta no alimento das nossas fomes mais profundas. Pedimos à criação o que só Deus nos pode dar. E a nossa tradição confirma que nada, nenhuma parte da criação, pode substituir Deus. Só o que é nada (nenhuma coisa e por sua vez tudo) pode ser alimento suficiente para a nossa fome.

 

Quando João da Cruz desenhou a montanha estilizada para representar o caminho da transformação, desenhou três caminhos que levam até ao cimo dela. Os dois caminhos exteriores, um dos bens do mundo e o outro dos bens espirituais, nenhum deles chega ao cimo. Só o caminho do meio, o dos nadas, alcança o cimo do Carmelo. Através de textos explica o seu ensino acerca do desenho. O conteúdo dos textos são variações do mesmo tema “possuir tudo, possuir nada”.

 

O texto explicativo que aparece na parte inferior do desenho ajuda-nos a entender a compreensão básica que João tem do itinerário espiritual. João da Cruz está convicto de que fomos criados para possuir tudo, conhecer tudo, ser tudo, etc., mas também sabe que nunca teremos tudo se pedirmos a uma parte da criação de Deus que sacie estes desejos. O seu conselho de nada possuir para tudo possuir é um misterioso encorajamento para que nunca peçamos a qualquer coisa (uma qualquer parte da criação) que seja tudo. Só o que é nada pode ser o nosso Tudo.

 

Um ascetismo deste tipo pode parecer absurdo se não se entender que João se dirige a homens e a mulheres que fizeram a experiência na vida de percorrer os outros dois caminhos na procura da realização plena. Os seus corações meteram-se ao caminho à procura dos seus amores e viram-se enredados pela vida, com os corações partidos e divididos. Os conselhos de João são palavras de vida dirigidos às pessoas que morrem por falta de alimento. Ele aponta o caminho da vida aos peregrinos que se extraviaram.

 

3.3. A tarefa profética
 

Um escritor defendia que a vocação Carmelita é a de estar suspenso entre o céu e a terra, sem se poder apoiar em nenhum dos dois lugares. Esta é talvez uma forma excessiva de dizer que, em última análise, a nossa fé, a nossa confiança e a nossa esperança em Deus devem ser o nosso único apoio, e que Ele nos conduz muito para além das nossas construções terrenas e espirituais. No fim da sua vida, Teresa de Lisieux experimentou que a esperança do céu que a animou durante toda a sua vida ria-se dela. João da Cruz recordava as observações de S. Paulo: se já temos o que esperamos, já não é esperança; a esperança está no que não se possui.

 

A espiritualidade de João da Cruz foi descrita como uma contínua interpretação acerca da natureza de Deus.

 

Acaso esta nossa suspeita quanto às intenções e às construções humanas convertem os Carmelitas em cabeças duras? Ou, pelo contrário, permite-nos fazer uma crítica aguda do coração humano e da sua tendência para criar ídolos? Não será isto um serviço de libertação, que nos vai libertando de tudo o que nos escraviza e nos entrega nas mãos dos ídolos? Não é a crítica Carmelita talvez um desafio para não nos apegarmos a nada, para que nada se converta no centro da nossa vida, excepto o Mistério que paira sobre ela? E nesta pureza de coração, realmente só alcançada pela acção do Espírito de Deus, somos capazes de amar os outros de um modo justo e de viver sabiamente neste mundo. O desafio do Carmelo é o de colaborar com o amor de Deus, por vezes obscuro, que vivifica e cura.

 

Esta contínua vigilância, no meio de todas as palavras e estruturas que construímos, para advertir a aproximação de Deus, é uma obrigação profética do Carmelo. A que Deus seguimos? Os deuses das nossas dependências? Os deuses das ideologias ou das teologias limitadas? Os deuses da economia opressiva e dos sistemas políticos? Os deuses de todos os “ismos” do nosso tempo? Ou o nosso Deus é o Deus que transforma, cura, liberta, vivifica?

 

O Arcebispo Óscar Romero foi um clérigo tradicional, cuidadoso e estudioso. Era um homem bom, reservado, piedoso, orante. No entanto, a sua conversão aconteceu quando viu outro rosto de Cristo, um rosto algo diferente do Cristo da sua piedade, da sua oração e da sua teologia, um rosto algo diferente do Cristo familiar da hierarquia de El Salvador. Era o rosto de Cristo no rosto do povo de El Salvador; era o rosto de Cristo concretamente encarnado na história e projectado nas lutas do seu povo. Romero disse: “Aprendemos a ver o rosto de Cristo - o rosto de Cristo que é também o rosto do ser humano que sofre, o rosto do crucificado, o rosto do pobre, o rosto do santo e o rosto de cada pessoa - e amamos cada um deles com o mesmo critério com que seremos julgados: ´tive fome e deste-me de comer´.

 

Os ídolos do nosso tempo não são somente os amores pessoais e as possessões, mas são sobretudo os ídolos do poder, do prestígio, do controle e do domínio, que deixam a maior parte da humanidade excluída do banquete da vida. Romero comentou: A pessoa pobre é a que se converteu a Deus e põe n’Ele toda a sua fé, e a pessoa rica é a que não se converteu a Deus e põe a sua confiança nos ídolos: dinheiro, poder, bens materiais... O nosso trabalho deve orientar-se para nos convertermos a nós mesmos e a todo o povo a este autêntico significado da pobreza”.

 

Muitas das nossas províncias confrontaram-se com os ídolos do nosso tempo, através dos movimentos de libertação em várias regiões do mundo, como nas Filipinas, América Latina, América do Norte, África, Indonésia e Europa do Leste. Hoje em dia as desigualdades entre o norte e o sul apontam para os ídolos dos “ismos”, que mantêm a maior parte do mundo numa condição de marginalização.

 

3.4. Resumo

 

As fomes do nosso coração lançam-nos para o mundo à procura de alimento. De muitas maneiras perguntamos ao mundo: “Viste aquele que fez isto ao meu coração e o deixou penando”? O nosso coração encontra-se disperso e perdido, enquanto perguntamos a cada pessoa, a cada possessão e a cada actividade que nos digam algo mais acerca do Mistério que está no centro da nossa vida.

 

A alma apaixonada pelos mensageiros de Deus confunde-os com o próprio Deus. Tomamos as coisas boas criadas por Deus e pretendemos que sejam Deus. O coração, cansado de peregrinar, procura instalar-se e construir um lar. Põe os seus desejos mais profundos nas relações, nas possessões, nos planos, nas actividades, nas metas, e pede a tudo isto que sacie as fomes profundas. Porém, pretendemos demasiado deles e como não podem resistir às nossas expectativas começam a desmoronar-se. Os santos Carmelitas nunca se cansam de nos recordar que só Deus é o alimento suficiente para saciar as fomes do nosso coração.

 

 

3.5. Perguntas para reflexão
  1. Quais são os ídolos, as coisas intocáveis, que se tornaram parte da minha vida? Quais são as coisas sem as quais não posso continuar? Danifico-as por me apegar fortemente a elas?
  2. Onde e de que modo, na minha vida, me tornei numa pessoa sem liberdade? Sinto-me livre para seguir os meus desejos mais profundos? Sou livre para escutar o chamamento que Deus me faz para entrar no Seu futuro, ainda que não me pareça claro? Sou livre para escutar as necessidades da minha comunidade?
  3. Construí inconscientemente o meu próprio reino mais do que procurar o Reino de Deus? Sem me dar conta, afastei Deus do centro da minha vida e pus nesse centro os meus nobres objectivos, o meu trabalho profético, a minha compreensão das exigências do Reino? Ao longo dos anos tenho-me vindo a esquecer de perguntar: “O que é que Deus quer”?
  4. A paixão que me trouxe ao Carmelo foi domesticada ou foi-se desvanecendo? Converti-me numa pessoa compulsivamente activa, talvez sentindo-me mais como um funcionário de uma instituição do que como um discípulo do Senhor?
Continua 

 

 

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