Santa Teresa e a Igreja do seu tempo

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Um dos temas mais interessantes no teresianismo científico e vital é o da Igreja, mas tendo presente que, para Santa Teresa, não era só um dogma a acreditar, mas uma família na qual viver, uma mãe da qual nos alimentamos, uma mestra da qual aprendemos e um ser vivo a quem amamos. Vejamos como viveu a Madre Teresa estas facetas da Igreja.

1. Ser e sentir-se Igreja. Sentir com a Igreja

É o primeiro: SER Igreja, ter consciência de pertencer a uma instituição, a uma grande família. Mas é uma Igreja histórica, real, não idealizada, não a nossa do Concílio Vaticano II, mas a do Concílio de Trento. A noção de Igreja que a Santa tem, como todos os católicos do seu tempo, é hierárquica, a dos papas, bispos, padres, frades e freiras, principalmente. Sobretudo, a dos “letrados”, mestres teólogos que ensinam e discernem, porque conhecem e entendem a Sagrada Escritura. São os “capitães” da cidade amuralhada, “defensores” dos soldados, cristãos de apoio, contra os hereges.

Ainda que pareça mentira, Teresa vive pouco a Igreja “romana” e pouco a “católica”. Nos prólogos dos seus primeiros escritos apela sempre e submete-se à “Igreja”, sem adjectivos. Tardiamente, e por imposição de algum conselheiro, escreveu entre linhas: o de católica e romana. Só no escrito tardio das Moradas aparece no texto a Igreja “católica”. É a mesma Igreja que vivem os espanhóis do seu tempo: uma Igreja “à espanhola”, a do Imperador Carlos V e a de Filipe II, não cismática, mas, com frequência, em confrontação com os papas de Roma, às vezes em guerra com eles, quando eram senhores temporais em seus territórios italianos e aliados dos inimigos de Espanha.

Duas notas ensombram a Igreja cristã que Teresa conhece. Em primeiro lugar, uma Igreja “pecadora”, deficiente, necessitada de reforma. Na sua longa vida activa, conheceu deficiências e pecados nos dirigentes da Igreja: bispos, cónegos, sacerdotes, religiosos e freiras. Não consta que tenha conhecido a Igreja mundana dos Papas do Renascimento, pelo menos não aparece uma só referência aos acontecimentos. Contudo, conheceu muitos mais santos e “servos de Deus”, como costuma chamar aos seus amigos, amigas e conhecidos. Ela, consciente das suas deficiências, contribuiu com talento, saúde e vida para recuperar a grandeza dos seus princípios evangélicos: caridade, simplicidade, humildade, pobreza, oração, desprendimento do eu e do apego aos valores mundanos, etc. Sem ela o querer nem buscar, forçada por vozes interiores e pela força do Espírito Santo, iniciou uma “reforma” voltando às origens da sua Ordem Carmelita.

Também conheceu uma Igreja “no meio de grandes tempestades”, vivendo em “tempos difíceis”. Conhece de perto, embora com muitas lacunas informativas, a Igreja “dividida” pela heresia dos “luteranos”, termo no qual engloba todos os dissidentes da Igreja, que matam sacerdotes, destroem igrejas, tiram o Santíssimo Sacramento do altar, etc. Conheceu uma Igreja inquisitorial, que buscava hereges e cismáticos, místicos falsos, judaizantes, e os julgava e condenava até com a pena de morte.

Tardiamente, parece que a partir do ano 1567, conheceu algo da Igreja do Novo Mundo, em que nem sempre os bons exemplos dos missionários e evangelizadores estavam presentes, mas antes, a avareza e os maus tratos aos índios por parte dos conquistadores espanhóis, entre os quais se encontravam sete dos seus irmãos. A essa Igreja histórica, a do seu tempo, se submete, não por medo à condenação da Inquisição, mas porque se sente “filha da Igreja”. Porque quer sentir com a Igreja, submete a sua vida, cheia de experiências místicas, as suas obras, escritas por obediência, aos juízes e confessores, mestres da fé e submetidos eles mesmos à Igreja docente.

2. Viver da Igreja

Teresa é consciente de que “vive da Igreja”. Se foi pelos seus pais incorporada à Igreja pelo baptismo, ela sabe que o baptizado é “membro da Igreja”, como o eram também os católicos convertidos em luteranos (Vida 32,6). Aprofundando na realidade do baptismo, reconhece que o baptismo a converteu em “esposa” de Cristo, que completará com a profissão religiosa (Caminho 22,7). Mas também é certo que nunca faz menção do seu baptismo, nem primeira comunhão, nem à confirmação.

Mas onde se manifesta generosa em informações e em doutrina apaixonada é no uso dos sacramentos da Igreja, verdadeiro e necessário alimento que a Igreja lhe oferecia: a confissão ou o sacramento do perdão, e a Eucaristia. Lendo as suas obras, especialmente a sua Autobiografia e as Fundações, e de passagem as suas Cartas, damo-nos contas do uso, hoje diríamos, do abuso, do sacramento da confissão. Quando fundava um convento numa cidade ou povoação, uma das suas primeiras preocupações era saber se ali encontraria facilidade para consultar a sua consciência com algum “letrado”. Não era só questão de confessar pecados, mas também de perguntar a um especialista nas Sagradas Escrituras se as suas experiências místicas estavam de acordo com a Revelação de Deus na sua palavra escrita. Às vezes também tirava dúvidas de direito civil ou eclesiástico, problemas económicos, selecção de vocações, cuidado das enfermas, etc.

No referente à Eucaristia era uma paixão de alma enamorada de Cristo. Chamavam-lhe a “a louca da Eucaristia”. Basta ler as páginas que ela dedica a comentar as palavras do Pater noster: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, referidos com exclusividade de outras interpretações, à Eucaristia. Outra prova do seu amor eucarístico é que não dava por fundada uma casa até que não se celebrasse a missa e se instalasse o sacrário. Parecia-lhe que em casa faltava o esposo. Muitos outros dados, ditos e doutrinas atestam a sua devoção a Cristo na Eucaristia.

3. Servir a Igreja

Mas não basta o desejo e os escritos. O seu amor à Igreja, o seu sentimento de ser Igreja é demonstrado com factos. Por estar baptizada na Igreja católica, sente-se obrigada a ser uma célula viva e dinâmica para o apostolado que lhe é possível realizar dentro de um convento de clausura. Como não pode de outra maneira, ela e as suas freiras, servirão a Igreja com os meios que a Igreja oficial permitia à mulher: a oração contemplativa nas clausuras. Ela teve a sorte de “servir a Igreja” de outra maneira muito mais efectiva. Quis “erguer a voz” para pregar a Cristo; a Igreja não a deixou por ser mulher, e porque São Paulo o tinha proibido. Anota numa das suas Contas de consciência que não estava de acordo com o uso indevido do texto paulino, como lhe disse Cristo numa das suas “locuções”: “Diz-lhes que não se guiem só por uma parte da Escritura, e se poderão, porventura, atar-me as mãos” (Conta de consciência 16. EDE, Julho 1571).

Santa Teresa fez dois grandes “serviços” à Igreja do seu tempo e de todos os tempos, porque o seu magistério permanece hoje com mais esplendor que nunca. O primeiro é o de ser “fundadora” de conventos reformados da Ordem do Carmo, com o novo título de Carmelitas Descalças/os. Às mulheres enclaustradas abriu-lhes o horizonte missionário, a salvação das almas, como projecto eclesial. À mulher, marginalizada no seu tempo pela Igreja, encarregou-lhe a tarefa de salvar o mundo com a oração, a contemplação e a vida evangélica. Enquanto outros combatiam os inimigos com as guerras de religião na Europa (ela estava contra as guerras de religião), e outros conquistavam impérios com a força das armas, ela e as suas freiras, em clausura, oravam e sacrificavam-se pelos que pelejavam com a força por uma vida melhor. E aos frades, fundados por ela, encomendou-lhes a missão de pregar o Evangelho em terras longínquas com o exemplo da vida e com os seus ensinamentos escritos.

Outra forma de “servir a Igreja” é mediante as suas obras escritas. Ainda antes de ser difundida pela imprensa, a sua Autobiografia corria manuscrita nas mãos dos professores da Universidade de Salamanca que a citavam nas suas aulas e alguns ouvintes fizeram-se carmelitas descalços. As edições das suas Obras completas, na sua língua original e em traduções nas línguas de todos os continentes, continuam a aparecer nos nossos dias. O mesmo se diga de cada uma das suas obras. Os estudos sobre ela multiplicaram-se de tal maneira que são inumeráveis, quase incontáveis. A celebração do V Centenário do seu nascimento (1515-2015) está a pôr em evidência a perene actualidade de Santa Teresa.

Temos que acrescentar outro “serviço” mais secreto e misterioso à Igreja universal: o exemplo da sua vida santa, atraente e, ainda, a simpatia que suscitam as suas virtudes “humanas”. Santa Teresa é hoje um dos modelos de perfeição cristã que mais seduz os leitores das suas obras e ouvintes da sua doutrina. Vivendo em Ávila, damo-nos conta da atracção que a sua figura continua a exercer entre os católicos e não católicos, crentes e ateus. Os turistas e peregrinos que se aproximam para visitá-la na sua “casa natal” continuam a aumentar, e aumentarão com as celebrações centenárias no ano 2014 (beatificação) e 2015 (nascimento).

4. Sofrer pela Igreja

“Sofrer pela Igreja” tem um duplo sentido. Primeiro, a Igreja como finalidade: sofre na sua carne a paixão Cristo para ajudar a Igreja em necessidade. Segundo: sofre por causa da Igreja. O conhecimento da Igreja pecadora, herética e cismática, fazia-a sofrer. 

Mas sofre sobretudo, por não poder “erguer a voz” apregoando o que ela conhece de Deus, de Cristo e do seu Espírito através das experiências místicas e da sua cultura religiosa. Sabe que a sua Igreja é demasiado andro-cêntrica, dirigida só por homens, os únicos que podem pregar, que tem juízes homens que vigiam e condenam muitas das práticas religiosas das mulheres devotas, sobretudo se têm experiências místicas. Os seus escritos, lidos em profundidade, contém muitas críticas contra esse modo de exercer a autoridade na Igreja. Pode-se dizer que ela é defensora de um feminismo eclesial, precursora de muitas feministas que podem ser células vivas na Igreja actual. Muitos dos contributos que ela deu à Igreja foram criticados, ou pelo menos foram suspeitos, para alguns dos teólogos do seu tempo. A oposição que encontrou em alguns eclesiásticos (sacerdotes e bispos) foi também um motivo para “sofrer” a sua Igreja.

Apesar de tudo, ela continuou a oferecer a sua vida à Igreja até ao último suspiro da sua vida.

Daniel de Pablo Maroto, OCD