Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa na comemoração dos cin­quenta anos do “25 de Abril”

1. Na comemoração do cinquentenário da Revolução de 25 de Abril de 1974 cabe aos Bispos de Portugal uma palavra que, sendo de congratulação, também seja de re­flexão e revisão do caminho percorrido pela sociedade portuguesa, de que a Igreja faz parte.

Saudando todos quantos bem serviram e servem o país no sustento da democracia política e no desenvolvimento social e solidário, será também oportuno lembrar o que a Conferência Episcopal Portuguesa publicou em duas cartas pastorais de antes e depois da data que comemoramos. É o que fazemos aqui com brevidade, por ser um método simples e concreto de revermos o que se propôs, o que se conseguiu e o que falta. 

2. Primeiramente a Carta Pastoral no décimo aniversário da “Pacem in Terris”, de 4 de maio de 1973, aplicando a Portugal os tópicos fundamentais da encíclica que S. João XXIII dedicara ao tema dos direitos humanos e da reta organização da vida social.

Não ignorando o que se fizera para dotar o país de mais riqueza, cultura, previdência e assistência, os Bispos acrescentavam palavras que cabe reproduzir, dada a precisão do diagnóstico, quase um ano antes do “25 de Abril”: «Não podemos descansar enquanto a expansão económica favorecer desmedidamente alguns, sem proporci­onar a todos os cidadãos a parte equitativa que lhes cabe na produção e distribuição dos bens. Não poderemos deter-nos, no caminho do progresso, enquanto a agri­cultura continuar a ser um setor deprimido no confronto com a indústria e os servi­ços, enquanto as possibilidades de acesso à educação e à cultura não estiverem generalizadas a todos os portugueses, enquanto houver quem se sinta indefeso pe­rante a doença e a velhice, enquanto os verdadeiros padrões de vida moral e cívica não impregnarem a sociedade inteira e lhe constituírem a autêntica armadura de­fensiva».

Uma “armadura defensiva” que requeria, segundo os Bispos, a maior participação de todos, incluindo pluralismo político, eleições livres, meios de comunicação igual­mente livres e responsáveis e processos ética e juridicamente irrepreensíveis de manter a segurança.

Diretrizes assim prepararam certamente quem as recebeu para a situação que advi­ria um ano depois graças ao Movimento das Forças Armadas, cujo programa coin­cidia em boa parte com os referidos pontos da Carta Pastoral. Aliás, o “25 de Abril” traduzia também a vontade de terminar com a guerra ultramarina, cada vez mais insuportável para a população em geral e contestada por muitos católicos politica­mente ativos. 

3. Mais desenvolvida foi a Carta Pastoral sobre o contributo dos cristãos para a vida social e política, de 16 de julho de 1974, na qual os Bispos respondiam aos apelos entretanto recebidos para darem uma palavra de orientação naquele «momento de profundas mutações na vida do Povo português».

Assim fizeram, aludindo ao fim de dois períodos históricos, a saber, o do anterior regime e o do império ultramarino, com o que tal exigia de redefinição nacional. Referiam depois “claros e escuros” no que se passara desde abril, com a exaltação das liberdades cívicas e o fim do ostracismo internacional que sofríamos; e também com excessos que os Bispos reprovavam, mas não queriam sobrevalorizar por sur­girem em fases de grande mutação social, a superar depois.

O documento episcopal apresentava igualmente o “conceito cristão de democracia”, que «parte da ideia do homem como pessoa, livre e responsável com destino pró­prio e transcendente, mas essencialmente solidário com os outros homens». Daqui que devesse ser respeitado nas suas agregações naturais ou solidárias, a começar pela família, sendo apoiado e não substituído pelo Estado, servidor do bem comum de todos.

Prosseguindo com as opções partidárias e esclarecendo as diferentes ideias que as suportavam, os Bispos concluíam com um apelo veemente à participação dos cató­licos na vida nacional a refazer: «Apelamos, pois, para a presença ativa dos católicos, ao lado de todos os homens de boa vontade, nas primeiras linhas da luta pelo Por­tugal de amanhã: nos partidos, sim, mas também nos sindicatos, nos meios de co­municação social, nos centros de cultura, etc.». 

4. Passado meio século, podemos e devemos reconhecer tudo quanto se conseguiu de positivo no Portugal democrático, a começar pela liberdade política, o fim da guerra em África e a dedicação cívica de tantos, das autarquias ao Estado, da vida nacional à integração europeia. Estabilizada a situação no novo quadro constitucio­nal, muito se conseguiu para responder a várias necessidades da altura ou depois surgidas – e muita participação houve também por parte de católicos politicamente comprometidos e de instituições de solidariedade social ligadas à Igreja.

Este mesmo impulso solidário, que ganhámos em cinquenta anos de vida democrá­tica, é o que nos levará a todos, cidadãos dum país entretanto enriquecido com populações advindas doutros espaços e culturas, a atingir novas metas nos campos da família, da habitação e do trabalho, da educação e da saúde e de tudo o que garanta uma vida digna a quantos somos hoje e seremos amanhã. Vida devida­mente respeitada e acompanhada em todas as suas fases e circunstâncias, da con­ceção à morte natural.

Retomemos as intenções dos autores do “25 de Abril”, no sentido da democratiza­ção do país, do fim da guerra e do desenvolvimento geral. Intenções que nos con­tinuam a reclamar nos dias de hoje.

No que à democracia diz respeito, necessário é que ela conte com a liberdade e a responsabilidade dos cidadãos, devidamente respeitados e estimulados para o in­cremento do bem comum. Tal apenas se consegue quando da família à escola e à vida social aprendamos a concertar a legítima diversidade de opiniões com a finali­dade comum do bem de todos.

No que à paz diz respeito, lembremos que ela é fruto da justiça, dando a cada um o que lhe é devido para viver e conviver dignamente. Isto mesmo a nível pessoal e também de grupos sociais, étnicos ou povos, todos com direito à respetiva identi­dade e autonomia.

Quanto ao desenvolvimento, lembremos que ele se ativa em cada pessoa, respei­tada e atendida no que requer para ser livre, criativa e responsável nas diversas pro­jeções do seu ser. Esta finalidade do desenvolvimento de todos e de cada um cons­titui o verdadeiro objetivo da ação política e não pode garantir-se quando ela en­cubra ambições de entidades ou grupos, económicos ou ideológicos, nacionais ou internacionais que sejam.

Neste momento comemorativo do “25 de Abril” também os quatro princípios per­manentes da Doutrina Social da Igreja – dignidade da pessoa humana, bem comum, subsidiariedade e solidariedade – nos levarão a prosseguir na senda então aberta.

Fátima, 11 de abril de 2024