Lucas, o Evangelista da Ternura de Deus

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Tendo em conta que Lucas é o evangelista do ano litúrgico que se avizinha (Ano C), Família Carmelita propõe uma apresentação do Terceiro Evangelho, no sentido de ajudar os seus leitores a enquadrar e compreender melhor os textos dos evangelhos dominicais.


O evangelho de Lucas é o terceiro, na ordem canónica, e o segundo, na extensão (24 capítulos). Regista unidade literária e temática com o livro dos Actos dos Apóstolos (o autor é o mesmo), à boa maneira das obras historiográficas da época. As duas obras começam de forma parecida e registam muitas palavras e expressões comuns, concretamente no final do evangelho e no começo do livro dos Actos (unidade literária). Além disso, apresentam diversos temas comuns: a salvação, o Espírito e a oração, entre outros (unidade temática).


1. O autor e as suas circunstâncias


Tudo leva a crer que o autor seja mesmo Lucas, “o caríssimo médico” (Cl 4, 14), discípulo de Paulo, um cristão de segunda geração que, para a composição do evangelho, se apoiou em Marcos e Mateus (teoria das duas fontes), assim como em fontes próprias. Tem a particularidade de trabalhar os textos que herda da tradição escrita ou oral, no que respeita à ordem, ao vocabulário e ao estilo, incutindo-lhes uma especificidade que não deixa insensível o leitor atento.

Lucas teria composto este evangelho por meados da década de 80, talvez em Antioquia da Síria, e destinou-o a cristãos de “cultura grega, como se vê pela língua, pelo cuidado em explicar a geografia e usos da Palestina, pela omissão de discussões judaicas, pela consideração que tem pelos gentios”. A preocupação é, sobretudo, reavivar a fé dos crentes (cfr. 1, 4) que se encontrava em estado de letargia, motivada pela rotina e pelo retardamento da parusia (cfr. 18, 8), a última vinda de Jesus que se pensava estar para breve.


2. Uma verdadeira pérola literária


O grego de Lucas é o melhor dos quatro evangelhos e, nalguns casos, situa-se ao nível do melhor grego clássico. Pela forma como escreve, o autor seria mesmo de língua e cultura gregas.


De entre os recursos literários e estilísticos, a maior parte são comuns aos restantes evangelhos (figuras de estilo, quiasmos, inclusões), mas há, pelo menos, dois aspectos que lhe são muito peculiares: a síncrese (paralelismo), com a qual Lucas, mesmo comparando, pretende sublinhar a superioridade de Jesus Cristo em relação a qualquer outro personagem (o exemplo mais evidente está nos dois primeiros capítulos e resulta do paralelismo entre Jesus e João); e a adequação da linguagem a cada um dos personagens, fazendo que haja diversidade no modo de falar dos intervenientes, conforme a sua maior ou menor instrução.


Do ponto de vista literário, a novidade maior prende-se com a “secção da viagem” (9, 51 – 18, 27[28]). Para além disso, aparece bem vincada a “narrativa da infância” (1 – 2), assim como a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus (23 – 24). Com base nestas constatações, apresentamos o seguinte esquema ou estrutura literária.

  • O Salvador entra na história (1 – 2). Os dois primeiros capítulos do Terceiro Evangelho, em que “a luz do Ressuscitado ilumina a manjedoura de Belém”, apresentam-se como uma síntese da fé cristã em Jesus. As palavras-chave são “alegria” e “paz”, por diversas vezes repetidas.
  • O tempo do Baptista (3, 1-20). João Baptista é, para Lucas, o último grande profeta, um anunciador da conversão (cfr. 3, 3.8), vista como uma atenção aos outros e aos problemas sociais (cfr. 3, 10.12.14).
  • Jesus inicia a sua pregação na Galileia (3, 21 – 9, 50). Após o relato das tentações de Jesus (4, 1-13) e o seu discurso programático na sinagoga de Nazaré (4, 14-30), o evangelho apresenta diversos ensinamentos e milagres de Jesus, onde se evidencia a palavra “evangelizar”.
  • Caminho para Jerusalém (9, 51 – 19, 27[28]). Tudo o que se passa a caminho de Jerusalém manifesta uma salvação em acto e, por isso, o advérbio de tempo “hoje” reveste-se de uma importância e força expressiva extraordinárias. A referência ao caminho para Jerusalém divide esta secção em três secções menores: a primeira apresenta a promessa do reino (9, 51 – 13, 21), a segunda as condições para entrar no reino (13, 22 - 17, 10) e a terceira a entrada no reino (17, 11 – 19, 27[28]).
  • Realização em Jerusalém (19, 28[29] – 24, 53). Jesus morto e ressuscitado é a realização e superação das promessas messiânicas e a luz que ilumina os acontecimen-tos do evangelho. A palavra “completar-se” ou “realizar-se” impera nesta secção.

 

3. A misericórdia divina ao serviço da salvação humana


Lucas é, por excelência, o evangelista da “mansidão de Cristo” (Dante Alighieri), expressão máxima da história da salvação. Ninguém melhor do que ele une estas duas realidades: a história e a salvação. Em seu entender, a salvação acontece no quotidiano, sendo Jesus Cristo o fundamento da história salvífica.


Começada em Israel, esta história de salvação continua na Igreja, cujos membros necessitam de se dispor a quatro procedimentos para a ela aceder:

  • Escuta da Palavra. Maria, mãe de Jesus (1, 26-38), e Maria, irmã de Marta e Lázaro (10, 38-42), são propostas como modelos de escuta para todos os crentes;
  • Desapego dos bens terrenos, em ordem a seguir Jesus de forma liberta e confiante (14, 33) e a não haver necessitados entre os cristãos (Act 2, 44-45);
  • Oração insistente, atitude com que Jesus prepara os grandes momentos do seu ministério e a que Lucas dá um especial relevo (3, 21; 6, 12; 9, 18.28-29; 26, 46);
  • Demanda ou consciência da cruz e da glória. O evangelho está repleto de viagens e verbos de movimento que ajudam a perceber que o caminho para a glória da ressurreição exige a passagem pela cruz, como acontece com Jesus Cristo. Exemplo evidente é o episódio dos discípulos de Emaús, onde Jesus pergunta: “Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua glória?” (24, 26).

 

Ao longo de todo o evangelho, as mulheres e os marginalizados merecem em Lucas um tratamento especial. Excluídos da sociedade e das suas prerrogativas, são por Jesus Cristo incluídos no processo salvífico, dado que a salvação é para todos e Jesus Cristo se afirma como o salvador universal.

P. João Alberto Sousa Correia