Domingo de Ramos - Ano A

DOMINGO DE RAMOS (ANO A)

13 de Abril de 2014

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus (Mt 26, 14-27; 27, 1-66)

Sugerimos que o nosso amigo leitor se socorra da Bíblia para tomar contacto com o texto do Domingo de Ramos (Mt 26, 14-27; 27, 1-66), em virtude do Evangelho deste Domingo ser muito longo e para não tornar este artigo muito extenso.

Chave de leitura

Todos os evangelistas dedicam bastante espaço ao relato da paixão e morte de Jesus. Os factos são, fundamentalmente, os mesmos, embora narrados de formas e a partir de perspectivas diferentes. Cada evangelista apresenta também episódios, detalhes e destaques próprios. Estes indicam a sua atenção e o seu interesse por alguns temas considerados significativos e urgentes para as suas comunidades. A versão do relato da paixão que hoje nos é proposta é a de Mateus. No nosso comentário vamo-nos limitar a sublinhar os aspectos característicos.

O primeiro, muito importante, é que Mateus enquadra todo o relato com repetidas chamadas de atenção para o cumprimento das Escrituras. Também os outros evangelistas citam as Escrituras, mas nenhum com tanta insistência. É que Mateus escreve o seu Evangelho para os Judeus, que foram educados pelas catequeses dos rabis a esperarem um Messias vencedor, dominador, grande, poderoso. Perante o falhanço com que se concluiu a vida de Jesus, quem tinha a coragem de o apresentar como Messias?

O desafio que, aos pés da cruz, é lançado a Jesus por sacerdotes, escribas e anciãos: «Salvou os outros e não pode salvar-se a si mesmo! Se é o rei de Israel, desça agora da cruz e acreditaremos nele» (Mt 27, 40) deve ser entendido nesta óptica. Estão dispostos a acreditar em quem vence, não em quem perde.

Aos Judeus e a todos os que também hoje se escandalizam diante de um Messias derrotado, Mateus responde: as profecias do Antigo Testamento anunciam um Messias humilhado, perseguido e morto; apresentam-no como o companheiro de cada pessoa sofredora e oprimida. Deus não salvou milagrosamente Cristo de uma situação difícil, não impediu a injustiça e a morte do Filho, mas transformou a sua derrota em vitória, a sua morte em nascimento, o seu túmulo num seio do qual nasceu para uma vida sem fim. Nele, Deus mostrou-nos que não vence o mal impedindo-o com intervenções prodigiosas, mas tirando-lhe o poder de fazer mal; mais ainda, tornando-o um momento de crescimento para a pessoa.

Mesmo deixando-nos guiar e iluminar pelas Escrituras – como sugere Mateus – é difícil assimilar esta lógica de Deus; é difícil aceitar que «se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto» (Jo 12, 24).

Um segundo ensinamento em que insiste sobretudo Mateus é o repúdio da violência e do uso das armas. Somente ele relata a frase de Jesus a Pedro que, para o defender, tinha desembainhado a espada: «Mete a tua espada na bainha, pois todos os que puxarem da espada morrerão à espada» (Mt 26, 52). Tertuliano, famoso apologeta do século II – III, comentava: «Desarmando Pedro, Jesus tirou as armas da mão de cada soldado.» E alguns anos mais tarde o biblista Orígenes escrevia: «Nós, os cristãos, deixámos de empunhar a espada, já não aprendemos a arte da guerra, porque através de Jesus tornámo-nos filhos da paz.» Os primeiros cristãos não tinham dúvidas: o discípulo de Cristo devia estar disposto, como o Mestre, a dar a vida pelos irmãos, nunca a matá-los.

Um dos temas preferidos de Mateus é o do universalismo da salvação. Israel não pode considerar-se o único depositário das promessas. Cumpriu a tarefa que o Senhor lhe confiara: preparar a vinda do Reino de Deus. Agora é aguardado, é o primeiro dos convidados para o banquete (Mt 22, 1-6). Infelizmente, Israel recusou o convite, e nas primeiras comunidades cristãs esta escolha foi vivida como uma dolorosa laceração, como uma espada que trespassa a alma (Lc 2,35), como «um espinho na carne» (2 Cor 12, 7).

Há dois factos no relato da paixão referidos apenas por Mateus: o sonho da mulher de Pilatos e o gesto do procurador de lavar as mãos, descaregando sobre os Judeus a culpa pela condenação à morte de Jesus (Mt 27, 19.24). Exprimem de forma emblemática o drama deste povo e a responsabilidade que assumiu ao não acolher o Messias, que lhe foi enviado por Deus. A expressão máxima desta recusa é o grito: «O seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos» (Mt 27, 25). A interpretação insensata desta frase teve consequências trágicas: ódios, acusações absurdas, violências, perseguições dos cristãos aos Judeus. O sentido que Mateus lhe atribuiu é totalmente diferente. Impressionado pelas desgraças que, na segunda metade do século I, tinham atingido o seu povo, e que culminaram na destruição de Jerusalém, ele tinha intuído a causa de todos os males: os Judeus tinham escolhido a violência e recusado o Reino de Paz anunciado por Jesus. O evangelista quer avisar acerca do perigo de se repetir o mesmo erro. Quem se afasta de Cristo para seguir outros messias, quem confia na violência, quem cultiva projecto de domínio, acaba sempre por provocar mais desgraças: faz cair sangue sobre si e sobre os próprios filhos.

Apenas Mateus relata os factos extraordinários que aconteceram no momento da morte de Jesus: «A terra tremeu e as rochas fenderam-se. Abriram-se os túmulos e muitos dos corpos de santos que tinham morrido ressuscitaram» (Mt 27, 51-56). Naquele tempo pensava-se que o mundo estivesse cheio de iniquidade, e todos aguardavam o nascimento de um mundo novo. Dizia-se, que no momento de passagem entre as duas épocas da humanidade, o Sol escureceria, as árvores derramariam sangue, as pedras partir-se-iam gritando e os mortos ressuscitariam. Assim, o que Mateus diz não deve ser entendido como o relato fiel de um facto acontecido a 7 de Abril do ano 30, mas como a afirmação de um teólogo que, no momento da morte de Jesus, se dá conta do nascimento de um mundo novo. A sua é uma mensagem de alegria e de esperança, uma mensagem enviada a todas as pessoas que se encontram na angústia e na dor, que se sentem circundadas pelas trevas da morte. O Reino de Deus teve início quando, na cruz, o Senhor revelou todo o seu amor e interesse pelo destino do homem.

Outro episódio que é referido apenas por Mateus é a morte de Judas (Mt 27, 3-10). Este discípulo é o símbolo de todos aqueles que, durante um certo tempo, seguem o Mestre; depois, dando-se conta que Ele não realiza os seus sonhos de glória e a sua sede de poder, abandonam-no e põem-se até mesmo contra Ele. Libertando-nos por um momento dos estereótipos, não podemos deixar de sentir respeito e piedade pelo drama deste homem. Quando viu o único que o amava ir ao encontro da morte, deve ter-se sentido terrivelmente só a carregar o peso do seu erro. Infelizmente, foi desabafar o seu tormento interior com as pessoas erradas, os sacerdotes do templo que se tinham servido dele. Se se tivesse dirigido a Cristo, a sua vida teria tido outro desfecho.

Por fim, apenas Mateus fala dos guardas postos a guardar o sepulcro (Mt 27, 62-66). São o sinal do triunfo do mal. A sua presença testemunha que o justo foi vencido, o libertador reduzido ao silêncio e fechado para sempre num sepulcro. É a experiência que todos fazemos: o mal dá sempre a impressão de ter garantido o triunfo definitivo, de tal modo que parecem sonhos as esperanças de justiça do pobre, do fraco, do indefeso. Mas Deus garante a sua intervenção, inesperada. O seu anjo fará rolar qualquer pedra que impeça o regresso à sua vida, e sentar-se-á nela (Mt 28, 2), e os soldados postos em defesa da injustiça e da iniquidade fugirão aterrorizados da sua luz (Mt 28, 4).

A morte de Jesus

Desde o meio-dia até às três da tarde a obscuridade total cobre a terra. Até a natureza sente o efeito da agonia e morte de Jesus. Pregado na cruz, privado de tudo, da sua boca sai um lamento: «Eli, Eli! Lama Sabactani!». Quer dizer: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?». É a primeira frase do salmo 22(21). Jesus entra na morte rezando, expressando o abandono que sente. Reza em hebraico. Os soldados que estavam perto d'Ele, e que faziam de guarda, dizem: «Está a chamar por Elias!». Os soldados eram estrangeiros, mercenários contratados pelos romanos. Não compreendiam a língua dos judeus. Pensavam que Eli queria dizer Elias. Jesus pregado na cruz encontra-se num abandono total. Mesmo que quisesse falar com alguém, não seria possível. Permaneceu completamente só: Judas atraiçoou-o, Pedro negou-o, os discípulos fugiram, as amigas estavam muito afastadas, as autoridades escarneciam-no, os que passavam insultavam-no, o próprio Deus o abandona e nenhuma língua serve para comunicar. Este foi o preço que pagou pela sua fidelidade à sua opção de seguir sempre o caminho do amor e do serviço para redimir os seus irmãos. Ele mesmo disse: «O Filho do homem não veio para ser servido mas para servir e dar a vida em resgate de muitos» (Mt 20, 28). No meio do abandono e da obscuridade, Jesus lança um forte grito e morre. Morre lançando o grito dos pobres, porque sabe que Deus escuta o clamor dos pobres (Ex 2, 24; 3, 7; 22, 22.26, etc.). Com esta fé, Jesus entra na morte, seguro de ser escutado. A Carta aos Hebreus comenta: «Ele ofereceu preces e súplicas com fortes gritos e lágrimas àquele que o podia libertar da morte e foi escutado pela sua piedade» (Heb 5, 7). Deus escutou o grito de Jesus e «exaltou-o» (Fil 2, 9). A ressurreição é a resposta de Deus à oração e ao oferecimento que Jesus faz da sua vida. Com a ressurreição de Jesus, o Pai anuncia a todo o mundo esta Boa Nova: «Quem vive a vida como Jesus servindo os irmãos, é vitorioso e viverá para sempre, ainda que morra, mesmo que o matem!». Esta é a Boa Nova do reino que nasce da Cruz.

O significado da morte de Jesus

No Calvário estamos diante de um ser humano torturado e excluído da sociedade, completamente só, condenado como herético e subversivo pelo tribunal civil, militar e religioso. Aos pés da cruz, as autoridades religiosas confirmam pela última vez que se trata verdadeiramente de um rebelde falhado e renegam-no publicamente (Mt 27, 41-43). Nesta hora de morte renasce um significado novo. A identidade de Jesus é revelada por um pagão: «Verdadeiramente este é Filho de Deus!» (Mt 27, 54). Desde agora em diante, se queres encontrar verdadeiramente o Filho de Deus não o procures no alto, nem no longínquo céu, nem no Templo cujo véu se rasgou, mas procura-o junto de ti, no ser humano excluído, desfigurado, sem beleza. Procura-o naqueles que, como Jesus, dão a vida pelos seus irmãos. É aí onde Deus se esconde e se revela, é aí onde podemos encontrá-lo. Aí encontra-se a imagem desfigurada de Deus, do Filho de Deus, dos filhos de Deus. «Não há maior prova de amor do que dar a vida pelos irmãos».