XIX Domingo do Tempo Comum - Ano B

19º DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B)

9 de Agosto de 2015

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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João (Jo 6, 41-51)

41Naquele tempo os judeus puseram-se a murmurar contra Jesus, por Ele ter dito: 'Eu sou o pão que desceu do Céu'; 42e diziam: «Não é Ele Jesus, o filho de José, de quem nós conhecemos o pai e a mãe? Como se atreve a dizer agora: 'Eu desci do Céu'?»

43Jesus disse-lhes, em resposta: «Não murmureis entre vós. 44Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair; e Eu hei-de ressuscitá-lo no último dia. 45Está escrito nos profetas: E todos serão ensinados por Deus. Todo aquele que escutou o ensinamento que vem do Pai e o entendeu vem a mim. 46Não é que alguém tenha visto o Pai, a não ser aquele que tem a sua origem em Deus: esse é que viu o Pai. 47Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê tem a vida eterna. 48Eu sou o pão da vida. 49Os vossos pais comeram o maná no deserto, mas morreram. 50Este é o pão que desce do Céu; se alguém comer dele, não morrerá. 51Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei-de dar é a minha carne, pela vida do mundo.»

Chave de leitura

Murmurar. Será que existe outra forma de não viver profundamente o que o Senhor nos pede? Mil razões plausíveis... mil justificações válidas... mil motivações lícitas... para não mastigar uma Palavra que rompe toda a razão, toda a justificação, toda a motivação, para deixar novos ecos de um céu não longe que habita nos corações dos homens.

v. 41: Os judeus puseram-se, então, a murmurar contra Ele por ter dito: “Eu sou o pão que desceu do Céu”. Jesus apenas tinha afirmado “Eu sou o pão da vida” (v, 35) e “desci do céu” (v. 38) e isto provoca desacordo entre as pessoas. “Judeus”, termo teológico em João, podemos considerá-lo como homónimo de “incrédulos”. Na realidade trata-se de galileus que se chamam judeus por causa da murmuração contra Jesus cujas palavras ultrapassam as suas categorias usuais. A linguagem do pão descido do céu é familiar. Os filhos de Israel conheciam o pão de Deus, o maná, que no deserto saciara a sua fome e a precariedade de um caminho de horizontes percorridos sem um final. Cristo, maná do homem que no deserto da sua fome insatisfeita invoca o céu para sustentá-lo na sua caminhada. Este é o único pão que sacia. As palavras dos judeus são objecções contra Jesus e ao mesmo tempo passagem para introduzir o tema da incredulidade. Em relação com outras passagens nas quais se refere que o povo “cochicha” (7, 12.32), neste capítulo temos sobre Jesus um “murmurar” acerca do que Ele disse, ou seja acerca das suas palavras. Este murmurar deixa ver claramente a incredulidade e a incompreensão.

v. 42: Não é Ele Jesus, o filho de José, de quem nós conhecemos o pai e a mãe? Como se atreve a dizer agora: ‘Eu desci do Céu’?”. A ironia é subtil. Os incrédulos conhecem as origens terrenas de Cristo, conhecem certamente o filho de José, mas não conhecem o Filho de Deus. Só os que acreditam é que conhecem a origem transcendente por intervenção directa de Deus na Virgem Santíssima. A passagem vai de uma linguagem nitidamente material: pão feito de água e farinha, para uma linguagem espiritual, um pão para a alma humana. Como da outra vez no deserto, os judeus murmuravam: não compreendem a origem nem o dom de Jesus. Como no outro tempo os pais rejeitaram o maná, porque era um alimento muito leve, agora os filhos rejeitam o Verbo feito carne, pão descido do céu, porque é de origem terrena. Os judeus tomam unicamente do que Jesus disse a afirmação: Eu desci do céu (v. 38). Porque é esta o que fundamenta os precedentes anúncios, o ser o pão da vida (v. 35). Não é talvez este... está presente nos evangelhos sinópticos, num contexto de estupefacção. Em Mateus ou em Lucas, o leitor, através das narrações da infância, já teve conhecimento da concepção virginal de Maria. Em João, os Judeus têm diante de si aquele que declara que desceu do céu sem colocar em discussão a sua natureza humana. Filho de José, quer dizer então ser um homem como os outros (cf. 1, 45).

vv. 43-44: Jesus disse-lhes, em resposta: “Não murmureis entre vós. Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair; e Eu hei-de ressuscitá-lo no último dia”. Jesus parece não insistir sobre a sua origem divina mas sublinha que só aquele que é atraído pelo Pai pode ir a Ele. A fé é pois um dom de Deus que tem como condição a abertura por parte do homem para escutar... mas, que quer dizer que o Pai atrai? O homem não é livre no seu caminhar? A atracção é simplesmente o desejo escrito naquelas tábuas de carne que todo o homem leva consigo. É, portanto, liberdade plena, adesão espontânea à fonte da própria existência. A vida não pode ser atraída senão pela vida, só a morte não se deixa atrair.

v. 45: Está escrito nos profetas: E todos serão ensinados por Deus. Todo aquele que escutou o ensinamento que vem do Pai e o entendeu vem a mim. A restante narrativa segue uma ordem bem precisa. Não é um convite mas um imperativo. A Palavra de Deus criadora que trouxe do nada à existência a luz e as outras criaturas, chama agora a sua semelhança a participar da nova criação. A consequência não brota de uma decisão autónoma e pessoal, mas do encontro com a pessoa de Jesus e do seu chamamento. É um acontecimento de graça, não uma escolha do homem. Jesus não espera uma livre decisão, mas chama com autoridade divina, como Deus chamava os Profetas no Antigo Testamento. Não são os discípulos que escolhem o Mestre como sucedia com os “rabbi” do tempo, mas é o Mestre quem escolhe os discípulos como depositários da herança de Deus que é mais que uma doutrina ou ensinamento. O chamamento comporta o abandono dos familiares, da profissão, uma mudança total de existência por uma adesão de vida que não admite espaços ao auto-centralismo. Os discípulos são homens do Reino. O chamamento para converter-se em discípulos de Jesus é um “chamamento escatológico”. A frase do profeta do desterro babilónico diz textualmente: “e todos serão filhos (de Jerusalém)” referente aos hebreus. O uso de “todos serão” é uma expressão da universalidade da salvação da qual Cristo é o cumprimento.

v. 46: Não é que alguém tenha visto o Pai, a não ser aquele que tem a sua origem em Deus: esse é que viu o Pai. Só Jesus, que vem de Deus, viu o Pai e pode revelá-lo definitivamente. O homem é chamado a vir de Deus. O conhecimento de Deus não é uma conquista mas uma origem. O movimento não é externo. Se procuro a proveniência externa posso dizer que tenho um pai e uma mãe, criaturas do mundo criado. Se procuro a proveniência profunda do meu significado existencial posso dizer que venho do Pai, Criador de toda a vida.

v. 47: Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê tem a vida eterna. Crer na palavra de Jesus, na sua relação, é condição para obter a vida eterna e poder ser “ensinado pelo Pai”. Creio, apoio-me numa rocha. A estabilidade não está no meu limite de criatura, nem na realização da minha perfectibilidade humana. Tudo é estável n'Aquele que não tem apegos temporais. Como pode uma criatura apoiar-se em si mesma quando não é dona de um só instante da sua vida?

v. 48: Eu sou o pão da vida. Novamente o tema do pão da vida é apresentado juntamente com o da fé e o da vida eterna. Jesus é o verdadeiro pão da vida. Este versículo está ligado ao v. 51: “Eu sou o pão vivo”. Só o que se alimenta deste pão, o que assimila a revelação de Jesus como pão vital, poderá viver.

v. 49-50: Os vossos pais comeram o maná no deserto, mas morreram. Este é o pão que desce do Céu; se alguém comer dele, não morrerá. O pão que desce do céu é colocado em relação com o maná que alimenta os pais sem os perseverar da morte. Este pão que dá a vida eterna e provém do alto é o Verbo Encarnado de Deus. O tema eucarístico, referenciado em algumas expressões precedentes, converte-se agora em tema central. A experiência da morte terrena não contradiz esta experiência de vida se se caminha pelas sendas do transcendente. O limite não é um limite para quem se alimenta d'Ele.

v. 51: Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei-de dar é a minha carne, pela vida do mundo. Alimento vital para o crente será a “carne” de Jesus. O termo carne (sarx), que na Bíblia indica a frágil realidade da pessoa humana diante do mistério de Deus, refere-se agora ao corpo de Cristo imolado sobre a cruz e à realidade do Verbo de Deus. Não é um pão de vida metafórico, mas sim a revelação de Jesus, porque o pão é a própria carne do Filho. Pela vida do mundo expressa a salvação que brota desta dimensão.

Reflexão

Murmurar. Se a nossa murmuração fosse como a brisa suave faria de acompanhamento harmonioso às palavras eternas que se fazem nossa carne: Eu sou o Pão vivo descido do céu. Que surpresa, então, sabendo que este Pão eterno não é um estranho, mas Jesus, o filho de José, um homem de quem conhecemos o pai e a mãe. O que come deste pão vive para sempre. Um Pão que nasce do amor do Pai. Somos convidados a escutar e a aprender a chegar a Ele na senda da atracção, sobre a pegada da fé que permite ver. Pão com pão, carne com carne. Só o que vem de Deus é que viu o Pai. O homem viu-o quando faz da sua carne o presépio do Pão vivo. Deserto e morte, céu e vida. Uma doce união que se realiza em cada Eucaristia... em cada altar, o altar do coração no qual o Sopro divino consuma o barro desfigurada do homem perdido.

Contemplação

A experiência do alimento que afasta a fome do coração recorda-me, Senhor, que poderei passar da imperfeição ao cumprimento para ser teu espelho não anulando a fome, mas interrogando-a para não encontrar mais nela um homo dormiens que nunca se interroga, que vive sem interesse, que não quer ver nem sentir, que não se deixa tocar, que vive no medo, mais na superfície do que na profundidade, que nos acontecimentos se mostra imóvel, em posição horizontal, dormitando, ou destroçando tudo o que encontra... mas como homo vigilans, que está sempre presente a si mesmo e aos demais, capaz de apagar-se no trabalho e no serviço, aquele que responsavelmente não se acaba no imediato, mas que sabe amadurecer na longa e paciente espera, aquele que expressa tudo o que é em cada fragmento da sua vida, aquele que não tem medo de sentir-se vulnerável, porque sabe que as feridas da sua humanidade, podem transformar-se em fendas através das quais a vida chega com o fluir do tempo, uma Vida que, podendo realizar finalmente o seu Fim, canta ao Amor com o seu “coração chagado” envolto numa “chama que consome e não dá pena” e além de o encontrar definitivamente está disposta a “romper a tela”. A fome já não é fome. Porque fica como doce peso do limite, protegido pela deliciosa chaga e sempre aberto ao doce encontro que saciará todo o desejo: “Meu Amado, as montanhas, os vales solitários nemorosos, as ínsulas estranhas, os rios rumorosos... é como noite calma, música silenciosa, solidão sonora... quem poderá curar este meu coração chagado?... É chama que consome e não dá pena... Oh Amado, rompe a tela deste doce encontro!” (São João da Cruz).