SANTÍSSIMO CORPO E SANGUE DE CRISTO (ANO C)
26 de Maio de 2016
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas (Lc 9, 10-17)
10Ao regressarem, os Apóstolos contaram-lhe tudo o que tinham feito. Tomando-os consigo, Jesus retirou-se para um lugar afastado, na direcção de uma cidade chamada Betsaida. 11Mas as multidões, que tal souberam, seguiram-no. Jesus acolheu-as e pôs-se a falar-lhes do Reino de Deus, curando os que necessitavam. 12Ora, o dia começava a declinar. Os Doze aproximaram-se e disseram-lhe: «Despede a multidão, para que, indo pelas aldeias e campos em redor, encontre alimento e onde pernoitar, pois aqui estamos num lugar deserto.» 13Disse-lhes Ele: «Dai-lhes vós mesmos de comer.» Retorquiram: «Só temos cinco pães e dois peixes; a não ser que vamos nós mesmos comprar comida para todo este povo!» 14Eram cerca de cinco mil homens. Jesus disse aos discípulos: «Mandai-os sentar por grupos de cinquenta.» 15Assim procederam e mandaram-nos sentar a todos. 16Tomando, então, os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao céu, abençoou-os, partiu-os e deu-os aos discípulos, para que os distribuíssem à multidão. 17Todos comeram e ficaram saciados; e, do que lhes tinha sobrado, ainda recolheram doze cestos cheios.
Chave de leitura: o contexto literário
Este texto encontra-se no meio do Evangelho de Lucas: Jesus alarga e intensifica a sua missão através das aldeias da Galileia e envia os seus doze discípulos para o ajudarem (Lc 9, 1-6). A notícia de tudo isto chega a Herodes, que mandara matar João Baptista (Lc 9, 7-9). Quando os discípulos regressam da missão, Jesus convida-os a ir para um lugar solitário (Lc 9, 10). Aqui aparece o texto de hoje acerca da multiplicação dos pães (Lc 9, 11-17). Em seguida Jesus faz uma pergunta: “Quem dizem as pessoas que eu sou?” (Lc 9, 18-21). Dito isto, pela primeira vez, fala da sua paixão e da sua morte e das consequências de tudo isto para a vida dos discípulos (Lc 9, 22-28). A seguir aparece a Transfiguração, em que Jesus fala com Moisés e Elias acerca da sua paixão, ficando os discípulos confusos e sem compreenderem (Lc 9, 44-55). Finalmente, Jesus decide ir a Jerusalém onde será morto (Jo 9, 52).
O contexto histórico do nosso texto
O contexto histórico do Evangelho de Lucas tem sempre dois aspectos: o contexto do tempo de Jesus nos anos 30, na Palestina, e o contexto das comunidades cristãs dos anos 80, para as quais Lucas escreve o seu Evangelho.
No tempo de Jesus na Palestina o povo vivia na expectativa de que o Messias quando chegasse seria um novo Moisés, e repetiria os grandes prodígios operados por Moisés no Êxodo: conduzir o povo pelo deserto e alimentá-lo com o maná. A multiplicação dos pães no deserto era para as pessoas o grande sinal de que o tempo messiânico estava a chegar (Jo 6, 14-15).
No tempo de Lucas, nas comunidades da Grécia, era importante confirmar os cristãos nas suas convicções de fé e orientá-los no meio das dificuldades. No modo de descrever a multiplicação dos pães, Lucas recorda a celebração da Eucaristia que se realiza nas comunidades dos anos 80 e ajuda as pessoas a aprofundar o significado da Eucaristia nas próprias vidas. Além disso, na própria descrição da multiplicação dos pães, como veremos, Luvas evoca figuras importantes da história do povo de Deus, Moisés, Elias e Eliseu, mostrando assim que Jesus é o verdadeiro Messias que vem cumprir as promessas do passado.
Comentário do texto
Lucas 9, 10: Jesus e os discípulos retiram-se para um lugar solitário. Os discípulos regressam da missão para a qual foram enviados (Lc 9, 1-6). Jesus convida-os a retirarem-se para um lugar solitário, perto de Betsaida, ao norte do lago da Galileia. O Evangelho de Marcos acrescenta que ele convida-os a descansar um pouco (Mc 6, 31). Descrevendo a missão dos 72 discípulos, Lucas descreve a revisão feita por Jesus da acção missionária desenvolvida pelos discípulos (Lc 10, 17-20).
Lucas 9, 11: As pessoas procuram Jesus e Jesus acolhe as pessoas. As pessoas sabem onde se encontra Jesus e seguem-no. Marcos é mais explícito. Diz que Jesus e os seus discípulos vão na barca e as pessoas seguem-no a pé, por outro caminho, para um lugar determinado. As pessoas chegam primeiro que Jesus (Mc 6, 32-33). Chegados ao lugar de descanso, vendo aquela multidão, Jesus acolhe-a, fala do Reino e cura os enfermos. Marcos acrescenta que as pessoas pareciam um rebanho sem pastor. Perante aquela situação das pessoas, Jesus comporta-se como um “bom pastor”, orientando-as com a sua palavra e alimentando-as com os pães e os peixes (Mc 6, 34ss).
Lucas 9, 12: A preocupação dos discípulos e a fome das pessoas. O dia começa a cair e aproxima-se a noite. Os discípulos estão preocupados e pedem a Jesus que despeça as pessoas. Dizem que no deserto não é possível encontrar comida para tanta gente. Para eles a única solução é que as pessoas regressem e se dirijam às aldeias vizinhas para comprar pão. Não conseguem imaginar uma outra solução. Nas entrelinhas acerca da descrição da situação das pessoas aparece algo de muito importante. Para poder estar com Jesus as pessoas esquecem-se de comer. Quer dizer que Jesus deve ter sabido atrair as pessoas ao ponto de se esquecerem de tudo, seguindo-o pelo deserto.
Lucas 9, 13: A proposta de Jesus e a resposta dos discípulos. Jesus diz: “Dai-lhes vós mesmo de comer”. Os discípulos assustam-se porque só têm cinco pães e dois peixes. Mas são eles que devem solucionar o problema e a única coisa que lhes ocorre é que as pessoas procurem ir às aldeias vizinhas comprar pão. Têm somente a solução tradicional, segundo a qual alguém deve procurar pão para as pessoas. Alguém deve obter o dinheiro, comparar pão e distribuí-lo pelas pessoas, mas naquele deserto esta solução é impossível. Eles não encontram outra possibilidade de resolver o problema. Ou seja: se Jesus insiste em não mandar as pessoas para suas casas, não há solução para resolver a fome das pessoas. Não lhes passa pela cabeça que a solução poderia vir de Jesus e das próprias pessoas.
Lucas 9, 14-15: A iniciativa de Jesus para resolver o problema da fome. Havia ali cinco mil pessoas. Muita gente! Jesus pede aos discípulos que as pessoas se sentem em grupos de cinquenta. É aqui que Lucas começa a usar a Bíblia para iluminar os factos da vida de Jesus. Recorda Moisés. Ele foi o primeiro que deu de comer às pessoas esfomeadas que se encontravam no deserto, depois da saída do Egipto (cf Num cap. 1 a 4). Lucas evoca também Eliseu. Eliseu mata a fome da multidão com alguns pães chegando a sobrar (2Re 4, 43-44). O texto sugere, pois, que Jesus é o novo Moisés, o novo profeta que devia vir ao mundo (cf. Jo 6, 14-15). Todas as comunidades conheciam o Antigo Testamento e para bom entendedor poucas palavras bastam. Assim vão descobrindo pouco a pouco o mistério que envolve a pessoa de Jesus.
Lucas 9, 16: Evocação e significado da Eucaristia. Depois do povo se sentar por terra, Jesus multiplica os pães e pede aos discípulos que os distribuam. Aqui é importante notar como Lucas descreve o acontecimento. Diz: “Tomando, então, os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao céu, abençoou-os, partiu-os e deu-os aos discípulos, para que os distribuíssem à multidão”. Este modo de falar às comunidades dos anos 80 (e de todos os tempos) faz pensar na Eucaristia. Porque estas mesmas palavras serão usadas (e são) na celebração da Ceia do Senhor (Lc 22, 19). Lucas sugere que a Eucaristia deve levar à multiplicação dos pães, quer dizer partilhar. Deve ajudar os cristãos a preocuparem-se pelas necessidades concretas do próximo. É pão de vida que dá coragem e leva o cristão a enfrentar os problemas das pessoas de modo diferente, não desde fora, mas a partir de dentro, das próprias pessoas.
Lucas 9, 17: O grande sinal: todos comeram. Todos comeram, ficaram saciados, sobraram cestos inteiros de alimento. Solução inesperada, realizada por Jesus e nascida a partir das pessoas, daquele pouco que tinham, cinco pães e dois peixes. E sobraram doze cestos, depois de cinco mil pessoas comerem cinco pães e dois peixes!
Aprofundamento: o milagre maior
Alguns perguntam-se: Não houve milagre? Foi só partilhar? Eis três reflexões a modo de respostas.
Primeira reflexão. Qual seria hoje o milagre maior: por exemplo, num determinado dia do ano, o dia de Natal, todas as pessoas têm que comer, recebem uma cesta de Natal. Outra alternativa poderia ser estas pessoas começarem a partilhar o seu pão com os outros, eliminando a fome a ponto de sobrar alimento para todas as pessoas. Qual seria o milagre maior? O que pensais?
Segunda reflexão. A palavra milagre (miraculum) provém do verbo admirar. Um milagre é uma acção extraordinária, fora do normal, que causa admiração e faz pensar em Deus. O grande milagre, o maior de todos, é o próprio Jesus, Deus feito homem. É tão extraordinariamente humano, como só o próprio Deus pode ser humano. Outro grande milagre é a mudança que Jesus consegue alcançar das pessoas, habituadas a soluções de fora. Jesus consegue que as pessoas enfrentem o problema a partir delas mesmas, a partir dos meios de que dispõem. Grande milagre, coisa extraordinária, e que mediante este gesto de Jesus todos comem e a comida sobra. Quando se partilha, há sempre... e sobra! Portanto, são três os grandes milagres: o próprio Jesus, a conversão das pessoas, a partilha dos bens que gera abundância. Três milagres nascidos da nova experiência de Deus como Pai, que se nos revela em Jesus. Esta experiência de Deus mudou todos os esquemas mentais e o modo de viver junto dos outros. Este é o milagre maior: outro mundo é possível!
Terceira reflexão. É difícil saber como aconteceram de facto as coisas. Não se está a afirmar que Jesus não realizou o milagre. Há factos e muitos! Mas não devemos esquecer que o milagre maior é a ressurreição de Jesus. Ao colocar a fé em Jesus começa-se a viver num mundo novo, partilhando o pão com os irmãos e as irmãs que não têm nada e têm fome: “E todos distribuíam o que tinham e não havia necessidades entre eles” (Act 4, 43). Quando na Bíblia se descreve um milagre, a atenção maior não é colocada no aspecto milagroso em si, mas mais no significado que tem para a vida e a fé das comunidades que acreditam em Jesus, revelação do Pai. No denominado “primeiro mundo” dos países ditos cristãos, os animais têm mais alimento do que os seres humanos do “terceiro mundo”. Há muita gente com fome. Isto quer dizer que a Eucaristia não tem ainda a profundidade e o enraizamento que poderia e deveria ter.