Amor Solidário, mesmo morrendo, renasce

Amor Solidário, mesmo morrendo, renasce

A História de uma Reforma que esqueceu o Amor

Image 

“Com amor eterno eu te amei. Dei a minha vida por amor!” Esta frase do nosso canto vem do livro do profeta Jeremias. Ela representa o início de uma curva importante na história do Povo de Deus. Através do profeta Deus dizia ao povo: “Eu amei você com amor eterno; por isso conservei o meu amor por você” (Jr 31,3). Esta insistência no amor aconteceu numa época em que tudo estava desintegrando. Nabucodonosor, rei da Babilónia, já tinha feito uma primeira invasão contra Jerusalém em 598 aC. Já tinha levado muita gente para o cativeiro (2Reis 24,10-17). Dentro da visão teológica oficial daquela época, não havia mais horizonte, estava tudo perdido. Nós perguntamos: Como e por que estava tudo perdido? E o que significa esta insistência no amor eterno?

Nas entrelinhas da frase de Jeremias, a gente sente e adivinha o seguinte. É como se Deus, o namorado, dissesse ao povo, sua namorada: “Depois de tudo que fez você já não mereceria ser amada. Mas meu amor por você não depende do que você fez por mim ou contra mim. Quando comecei a amar você, eu o fiz com um amor eterno. Por isso, apesar de tudo que você me fez, apesar de todos os seus defeitos, eu gosto de você, eu amo você para sempre! Pode confiar! “Eu amei você com amor eterno; por isso conservei o meu amor por você” (Jr 31,3). E a gente pergunta: “Então, o que houve para Deus falar assim? Qual foi a quebra que houve? E em que consiste esse amor eterno de Deus?

 

Na raiz de tudo está a Aliança que Deus fez com o povo depois da saída do Egito. Libertando o povo, Deus lhe revelou seu amor e conquistou um título de propriedade. É como se dissesse: “Agora você é meu!” (Is 43,1). Fez uma aliança, uma espécie de contrato: “Agora, vocês são o meu povo e eu sou o Deus de vocês” (cf. Ex 19,4-6; 24,8). O sinal que os unia era a aliança que selaram ao pé do Monte Sinai. Deus, para expressar seu amor, libertou o povo da injustiça e da opressão do Faraó e lhe indicou um caminho seguro para continuar a viver na liberdade e na justiça. Este caminho são os Dez Mandamentos. E o povo para expressar seu amor a Deus, comprometeu-se solenemente a observar os Dez Mandamentos e, assim, manter-se dentro do rumo da justiça e da liberdade (Ex 24,1-8).

Com outras palavras, na raiz de tudo está o amor gratuito de Deus, a livre escolha que Ele fez de amar sempre o seu povo, e está a resposta agradecida e amorosa do povo que se comprometeu a observar a Lei de Deus. Amor mútuo! A palavra amor em hebraico é hêsed. A tradução mais correta é “amor fiel”. Amor fiel da parte de Deus para com o povo, e amor fiel da parte do povo para com Deus. É a expressão do compromisso mútuo que os dois assumiram de fidelidade à Aliança. O resultado desta aliança de amor, fruto da observância da Lei de Deus, seria a convivência fraterna de partilha e de bem-estar numa harmonia total das pessoas entre si, com Deus e com a natureza. Numa palavra, seria vida em plenitude (Jo 10,10). Assim deveria ser. Assim seria o ideal.

 

Na realidade, o povo não foi fiel em observar as cláusulas da Aliança. Os Reis manipulavam a Aliança em favor dos seus próprios interesses. As consequências desta infidelidade progressiva foram aparecendo na desarrumação e desintegração da vida do povo. Apareceram o empobrecimento, a opressão e a desumanização. Tudo desandou e em 722 aC, como resultado desta desintegração, aconteceu a queda do Reino do Norte (Israel). O Estado de Israel e a sua capital Samaria foram destruídas pelos assírios e seu  povo foi levado para o cativeiro.

 

A destruição de Israel no Norte foi um aviso ameaçador para o povo de Judá no Sul: ou mudamos de vida, ou teremos o mesmo destino! Resolveram mudar de vida e proclamaram uma  grande reforma. Foi a assim chamada Reforma Deuteronomista. Iniciada pelo rei Ezequias e assumida com força pelo rei Josias, esta reforma obrigava o povo a voltar à observância da Lei. O acento caía na observância, na responsa­bilidade do povo, e não no amor.

 

A insistência na observância era tão forte que se chegou a dizer ao povo: Agora vai depender só de vocês. Diante de vocês está a opção de escolher entre a vida ou a morte, entre a bênção e a maldição. Observando a Lei vocês terão a bênção e a vida. Transgredindo a Lei vocês atraem sobre si a maldição e a morte. O capítulo 28 de Deuteronómio enumera as bênçãos como fruto da observância fiel (Dt 28,1-14) e os males como fruto das transgressões e da infidelidade (Dt 28,15-68). Coisas terríveis e castigos inacreditáveis são enumerados para obrigar o povo a observar a lei e, assim, evitar o desastre da desintegração, igual ao que aconteceu à Israel. Prevaleceu o medo do castigo sobre a vontade de servir por amor.

 

Apesar de tudo isto, a reforma não teve êxito. Apesar de todos os avisos, eles não deram conta de observar a lei. Com a morte de Josias em 609 aC. morreu também a reforma. Onze anos depois, em 598 aC Nabucodonosor veio uma primeira vez. Outros onze anos depois, em 587 aC, na segunda vinda de Nabucodonosor, tudo foi destruído, tudo! O templo, o rei, a terra, os palácios, o povo, os sacerdotes. Tudo que tinha sido sinal da presença de Deus desapareceu.

 

Quem semeia vento, colhe tempestade, diz o povo. Olhando esta situação terrível de destruição e de abandono, o povo concluiu: colhemos o que plantamos; não adianta chorar leite derramado. Abrimos as comportas e a água invadiu e destruiu tudo. Nós quebramos o contrato da aliança com Deus, e sobre nós caíram as maldições previstas no contrato (cf. Dt 28,15-68). Nós rompemos com Deus, e ele rompeu connosco. Acabou. Foi uma história bonita de 1300 anos, desde Abraão e Sara, mas agora terminou. Copo quebrado em mil pedaços não tem conserto! Fim de linha.

 

Esta situação de desespero e de desencanto está expressa, com todas as letras, na 3ª Lamentação. (Lam 3,1-18). Olhando assim a história, realmente, a conclusão lógica era esta: “Acabou-se minha esperança que vinha de Javé” (Lam 3,17-18). A reforma deuteronomista, feita de cima para baixo e baseada só na observância, falhou e matou a esperança na alma do povo. Este sentimento de fracasso jogou o povo no mais fundo do poço do desespero. Muita gente pulou fora do barco.

 

Ora, foi aí, nesta situação escura sem horizonte, que os profetas desenterraram a raiz do amor fiel, do amor solidário de Deus. Diz a mesma Lamentação: “No fundo da memória tenho alguma coisa que me faz ter esperança!” (Lam 3,21). É neste ambiente de desespero que aparece a frase de Jeremias como o início de uma curva importante na história do Povo de Deus: “Eu amei você com amor eterno; por isso conservei o meu amor por você” (Jr 31,3). E esta outra afirmação de Isaías: “Num ímpeto de ira, por um momento eu escondi de você o meu rosto; mas agora, com amor eterno, volto a me compadecer de você, diz Javé, seu redentor” (Is 54,8). Foram os profetas, sobretudo Jeremias, Oséias e Isaías, que souberam redescobrir esta dimensão do amor gratuito de Deus e da sua promessa muito anterior à observância (cf. Is 41,8-14; 49,15;Jr 31,31-37; Os 2,16). E ainda: “É bom esperar em silêncio a salvação de Javé. Embora castigue, ele se compadecerá com grande amor” (Lm 3,26.32).

 

Foi a lembrança do que Deus fez no passado que desenterrou do fundo da memória do povo a esperança renovada no amor gratuito de Deus. Foi aí no cativeiro, no mais fundo do fundo do poço, que recomeçou a releitura da história, não mais para provocar a observância da lei como tinha feito a reforma deuteronomista, mas para provocar no povo a certeza do amor maior de Deus que supera as falhas e dá esperança. Descobriram que a história não começou com a imposição de leis que pedem observância. Muito antes da lei eles tiveram a revelação do amor e da promessa de Deus que gera esperança e provoca a resposta de amor na observância dos Dez Mandamentos.

 

Foi neste mesmo ambiente do cativeiro, que o povo redescobriu sua missão como Povo de Deus: não mais para ser um povo glorioso, colocado acima dos outros povos, mas sim para ser um povo servo, Servo Sofredor, cuja missão é revelar o amor de Deus, irradiar a bondade de Deus, difundir a justiça, não desanimar nunca e, assim, ser a Luz das Nações (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12).

 

Nasce aí uma nova experiência de amor de Deus que pode ser definido como o AMOR SOLIDÁRIO DE DEUS para com seu povo. Foi a fé no amor solidário de Deus que fez o povo renascer e ter esperança e que, como reflexo, produziu no povo atitudes e gestos de amor solidário. Renasce a aliança, a experiência do amor mútuo. É o que está acontecendo hoje nas Comunidades Eclesiais de Base e aqui no Mosteiro do Servo Sofredor.

 

É sob este aspecto do amor solidário de Deus para com o seu povo que eles agora vão reler toda a história, desde Abraão até o tempo do cativeiro. É sob este aspecto da promessa e da esperança, nascidas da experiência do amor solidário de Deus, que vai ser articulada a redacção final do Antigo Testamento. O recado final, confirmado mais parte por Jesus, era este: Nós podemos romper com Deus. Somos fracos. Ele, Deus, nunca rompe connosco. Seu amor é eterno, nos dá esperança e coragem para voltar. É o que está acontecendo aqui no Mosteiro.

 

É nesta perspectiva da fé, da esperança e do amor que devem ser lidas, relidas e meditadas as histórias da criação, do paraíso, da aliança com Noé, da chamada de Abraão, da caminhada de Abraão, da libertação da opressão do Egipto e da conclusão da Aliança com o compromisso da observância dos Dez mandamentos. Agora, eles observam a Lei não para merecer nem para escapar do medo do castigo, mas para expressar a gratidão e o amor que a ação de Deus despertou no povo. Quem procura viver e conviver na intimidade deste Deus, necessariamente vai irradiar os gestos do amor solidário deste Deus. Como dizia Jesus: Quem vê a mim, vê o Pai. É o que veremos na história do amor expressa nos salmos 146 e 119.

 

Carlos Mesters, O. Carm.