Da vida consagrada podemos dizer o mesmo que Bento XVI afirma do Cristianismo: na sua origem não está uma ideia bonita, genial, nem umas regras de bom comportamento, mas o encontro com a pessoa de Cristo que dá sentido, forma e cor a uma vida. Uma vida consagrada que não brote de uma relação apaixonada, uma aliança, não passará de uma casa construída sobre areia mole, sem alicerces, sem vigas que resistam à mais pequena ventania. Vale também aqui o pensamento de São Paulo: «Ninguém pode pôr outro fundamento além do que foi posto: Jesus Cristo» (1Cor 3,11). Muitas vidas consagradas perdem-se ou, pelo menos, vão-se arrastando amargamente por não terem posto este alicerce, esta primeira pedra, ou por terem construído com materiais falsos. «Fazemos bonecos de neve e depois, admiramo-nos de que eles se derretam» (Walter Scott). Os nossos votos, a missão, a fraternidade ou os assentamos sobre o granito que é Jesus Cristo ou sujeitamos todo o edifício a esborralhar-se mais cedo ou mais tarde. O alicerce firme, o ferro e cimento, é Cristo e nada mais. Ele é o rosto, o caminho, o horizonte da vida consagrada. Demos alguns exemplos de como, por vezes, edificamos sobre alicerces moles ou com materiais falsificados.
Comecemos pela vida fraterna em comunidade. Frequentemente, põe-se o fundamento da mesma no romantismo fraterno, na beleza e na doçura de viver juntos como irmãos (cf. Sl 133,1). Pretende-se encontrar na vida consagrada a harmonia, a compreensão, o conforto afectivo, a eterna paz e alegria, em suma, o calor de uma família perfeita e sem nuvens. Erro tremendo. A comunidade é «uma» razão da vida consagrada, mas não «a» razão. É importante, vital, mas não é o fundamento, o alicerce. É um valor fundado, e não um valor fundante da vida consagrada. Não vivemos em comunidade porque damos as mãos uns aos outros, fazendo uma roda de amor, mas porque Jesus Cristo nos convocou antes de nos termos conhecido; o encontro de uns e outros com Ele precede o encontro entre nós. A comunidade exterior, visível, não faz senão aflorar a comunhão interior que nos liga a Cristo e em Cristo. Ele é o ponto de encontro, o elo da comunhão. Sentimo-nos irmãos porque Ele nos revela o Pai comum. A comunidade só tem sentido, se no meio dela, estiver Jesus Cristo. Judas corta a comunhão com Jesus e deixa de fazer parte da comunidade. Os discípulos de Emaús afastam-se da comunidade porque sem Jesus ela não tinha sentido. Quando verificam que Jesus está vivo, voltam a correr para Jerusalém, para o seio do grupo. A comunidade só se mantém graças a Cristo. Como é que Pedro se iria entender com Judas, se Jesus não estivesse no meio? Como é que Simão, que era zelota, inimigo ardente dos Romanos, iria «tragar» a presença de Mateus, cobrador de impostos para os Romanos?
Jesus Cristo ensina-nos que a fraternidade se constrói à sombra da cruz. Quem tem alguns anos de vida consagrada sabe das virtudes e limites da comunidade. Esta é apoio e estímulo, mas também desafio e prova. «A minha maior penitência é a vida comum» - dizia alguém com uma expressão realista, mas unilateral. Hoje cai-se noutro extremo: «A comunidade é o meu idílio, o meu sonho». Não vimos à vida consagrada para nos apoiarmos em fulano ou beltrano, mas para seguir Cristo, que nunca desilude. «Sei a quem me agarrei» dizia Paulo (cf. 2Tm 1,12).
O segundo exemplo tem a ver com a missão. Fundar a vida consagrada sobre a missão é um equívoco frequente. Abraça-se a vida consagrada para «evangelizar o mundo», para «servir o povo de Deus», para «libertar» os pobres…
Não é exacto. Se o que nos prende à vocação forem os pobres, as crianças, os doentes, as missões, estaremos presos por laços bem fracos. No dia em que por doença, pela idade, pelo que for, já não pudermos estar no meio deles, lá vai o sentido, a felicidade e a realização da nossa vida. A verdade é que não viemos por causa das crianças ou dos pobres, mas por causa de Cristo.
Quantos erros por inadvertência deste ponto! Por vezes andamos tão empenhados na causa de Cristo que até nos esquecemos do próprio Cristo. Tão preocupados com o Reino que não ligamos importância ao Rei. Como certos pais e mães: tão atarefados com o bem-estar dos filhos, que não têm tempo para estar com os filhos. Se perdermos o contacto com o único Salvador, não salvamos o Mundo. Jesus fez-nos pescadores de homens, mas o anzol, a isca, é Ele. Se Jesus não estiver presente, fartar-nos-emos de trabalhar a noite inteira, como Pedro e seus companheiros, mas não apanharemos nada (cf. Lc 5,5). «Sem mim, nada podereis fazer» (Jo 15,5).
Demos também o exemplo da castidade consagrada. Ensina-se por vezes, que se faz este voto para vivermos numa família nova, para termos um amor aberto a toda a gente, para nos dedicarmos ao povo de Deus com maior liberdade. Fundamento falso!
Leiam-se os admiráveis «elogios da virgindade» feitos pelos Padres da Igreja, como Cipriano, Ambrósio, Agostinho, Jerónimo, Basílio, João Crisóstomo. A sua reflexão está marcada pela cultura da época, mas que autenticidade, que elevação, que força e clareza a desses educadores da fé!
O que é a castidade? É o «seduziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir». Quem é que nos seduziu? As crianças, os paroquianos, os habitantes da África ou da Ásia, a promoção humana, a pregação? Ou Jesus Cristo, meu Senhor? Quando alguém se sente desiludido com a comunidade ou a congregação, pode encontrar o alívio no trabalho e nas amizades. Quando alguém se sente frustrado na missão, devido à falta de resultados ou às dificuldades que aparecem, pode encontrar na comunidade um apoio ou, pelo menos, uma compensação e um escape. Mas quando alguém se envolve afetivamente com um homem ou uma mulher, não há comunidade nem povo que lhe valham. Sem uma relação intima com Cristo, nada está garantido. Pelo contrário, uma crise afetiva só derruba uma pessoa consagrada quando esta já se encontra por terra na sua vida espiritual.
E ainda um quarto exemplo, o da pobreza consagrada. A pobreza, o que é? Deixar o pouco ou o muito que se tem? Pedir licenças? Comprometer-se com os pobres? Não. É estar comprometido, desposado, com Jesus pobre. É Ele que te ensina a ser pobre, com o pobre, como o pobre e para o pobre. Na base do desprendimento está a posse de Cristo, um Tesouro, uma Pérola preciosa e tão cintilante que os bens deste mundo não podem fazer concorrência: não passam de prejuízo, perda, lixo (cf. Fl 3,8). À luz de Cristo é que desabrocha a confiança total no Pai e são possíveis todas as audácias, todas as aventuras.
Por conseguinte, não abracei a vida consagrada para alguma coisa, em vista de alguma finalidade, por nobre que seja. Abracei a vida consagrada porque Jesus me escolheu e descobri nele uma Pérola de incalculável valor. Pedro e André, Tiago e Levi não deixaram as redes e barcas, escritório e contas, pais e irmãos, para conseguirem isto ou aquilo; nem sequer deixaram família e bens para anunciar o Evangelho, pois ainda não sabiam que havia um Evangelho para anunciar. Deixaram tudo porque foram hipnotizados, seduzidos por Jesus que passava. Só o encanto, o fascínio de Cristo explica a decisão dos nossos fundadores e de nós próprios. Se deixarmos de sentir essa fascinação, este fogo, a nossa vida já não tem explicação nem sentido. Perdemos o pé, o chão o socalco. Lembremos o fado: «Sou feliz e só por isto…».
Abílio Pina Ribeiro, CMF