SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS (ANO C)
1 de Novembro de 2016
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus (Mt 5, 1-12)
Naquele tempo,ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se. Rodearam-n’O os discípulos e Ele começou a ensiná-los, dizendo: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados os humildes, porque possuirão a terra. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa».
As bem-aventuranças
Estes primeiros versículos do capítulo 5º do evangelho de Mateus servem ao mesmo tempo como introdução e como resumo do Sermão da Montanha. Apresentam-nos um retrato das qualidades do verdadeiro discípulo, que, no seguimento de Jesus, procura viver os valores do Reino de Deus. Basta uma leitura superficial para ver que a proposta de Jesus está na contra-mão da proposta da sociedade vigente, tanto a do tempo de Jesus, como a de hoje. Embora de uma forma menos contundente do que o texto paralelo do “Sermão da Planície” de Lucas (Lc 6, 20-26), o texto de Mateus deixa claro que o seguimento de Jesus exige uma mudança radical na nossa maneira de pensar e viver.
“Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos Céus”. O leitor pode ficar desorientado: como é possível que os pobres possam ser felizes? Na Bíblia, o pobre é aquele que se esvazia de si mesmo e sobretudo renuncia à sua presunção de construir o seu presente e o seu futuro de modo autónomo, para deixar, pelo contrário, mais espaço e atenção ao projecto de Deus e à sua Palavra. O pobre, sempre em sentido bíblico, não é um homem fechado em si mesmo, miserável, mas alimenta uma abertura a Deus e aos outros. Deus é a sua riqueza. Poderíamos dizer com Santa Teresa de Ávila: felizes são os que fazem a experiência de que “Só Deus basta!”, no sentido de que são ricos de Deus.
Um grande autor espiritual do nosso tempo descreveu deste modo o sentido verdadeiro da pobreza: “Enquanto o homem não esvaziar o seu coração, Deus não o pode encher de si. Enquanto e na medida em que de todo esvazie o seu coração, o Senhor o enche. A pobreza é o vazio, não só no que se refere ao futuro, mas também no que diz respeito ao passado. Nenhum lamento ou recordação, nenhuma ânsia ou desejo. Deus não está no passado. Deus não está no futuro. Ele é a presença! Deixa a Deus o teu passado, deixa a Deus o teu futuro. A tua presença é viver no acto que vives, a presença pura de Deus que é a Eternidade” (Divo Barsotti) .
É a primeira bem-aventurança não só porque abre as outras mas também porque parece condensar as variedades específicas das outras.
“Bem-aventurados os mansos porque possuirão a terra”. Os “mansos” não são os fracos, os que suportam passivamente as injustiças, os que se conformam com as violências orquestradas pelos poderosos; mas são aqueles que recusam a violência, que são tolerantes e pacíficos, embora sejam, muitas vezes, vítimas dos abusos e prepotências dos injustos. A sua atitude pacífica e tolerante torná-los-á membros de pleno direito do “Reino”.
“Bem-aventurados os que choram porque serão consolados”. Pode-se chorar devido a uma grande dor ou sofrimento. Tal estado de ânimo mostra que se trata de uma grave situação, mesmo que não se indiquem os motivos causadores. Querendo hoje identificar a identidade destes “aflitos” pode-se pensar em todos os cristãos que desejam veementemente a chegada do Reino e sofrem por haver tantas coisas negativas na Igreja; em vez de se ocupar da santidade, a Igreja apresenta divisões e feridas. Podem ser também os que estão aflitos por causa dos seus próprios pecados e inconsistências e que, de alguma forma, retornam ao caminho da conversão. Só Deus pode levar a estas pessoas a novidade da “consolação”.
“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”. A quarta bem-aventurança proclama felizes “os que têm fome e sede de justiça”. Provavelmente, a justiça deve entender-se, aqui, em sentido bíblico – isto é, no sentido da fidelidade total aos compromissos assumidos para com Deus e para com os irmãos. Jesus dá-lhes a esperança de verem essa sede de fidelidade saciada, no Reino que vai chegar.
O segundo grupo de “bem-aventuranças” (vers. 7-11) está mais orientado para definir o comportamento cristão. Enquanto que no primeiro grupo se constatam situações, neste segundo grupo propõem-se atitudes que os discípulos devem assumir.
“Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. Os “misericordiosos” são aqueles que têm um coração capaz de compadecer-se, de amar sem limites, que se deixam tocar pelos sofrimentos e alegrias dos outros homens e mulheres, que são capazes de ir ao encontro dos irmãos e estender-lhes a mão, mesmo quando eles falharam.
“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”. Os “puros de coração” são aqueles que têm um coração honesto e leal, que não pactua com a duplicidade e o engano.
“Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus”. Os “que constroem a paz” são aqueles que se recusam a aceitar que a violência e a lei do mais forte rejam as relações humanas; e são aqueles que procuram ser - às vezes com o risco da própria vida - instrumentos de reconciliação entre os homens.
“Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos Céus”. Os “que são perseguidos por causa da justiça” são aqueles que lutam pela instauração do “Reino” e são desautorizados, humilhados, agredidos, marginalizados por parte daqueles que praticam a injustiça, que fomentam a opressão, que constroem a morte. Jesus garante-lhes: o mal não vos poderá vencer; e, no final do caminho, espera-vos o triunfo, a vida plena.
Na última “bem-aventurança” (“Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa”), o evangelista dirige-se, em jeito de exortação, aos membros da sua comunidade que têm a experiência de serem perseguidos por causa de Jesus e convida-os a resistirem ao sofrimento e à adversidade. Esta última exortação é, na prática, uma aplicação concreta da oitava “bem-aventurança”.
Na homilia da missa celebrada em 9 de Junho de 2014, o Papa Francisco em resumo dizia o que a seguir se segue acerca das bem-aventuranças. As bem-aventuranças são o bilhete de identidade do cristão, um programa de santidade que vai contra a corrente em relação à mentalidade do mundo. Jesus faz quase uma paráfrase, um comentário dos dois grandes mandamentos: amar o Senhor e amar o próximo. Como posso fazer para me tornar um bom cristão? A resposta é simples: é preciso fazer o que Jesus diz no discurso das bem-aventuranças.
Este é o programa de vida que Jesus nos propõe. Um programa muito simples mas ao mesmo tempo muito difícil. É o caminho para viver a existência cristã a nível de santidade. São poucas e simples palavras, mas práticas para todos porque o cristianismo é uma religião prática: de acção, deve ser praticada não só pensada.
Palavra para o caminho
“Dia de Todos os Santos. Deus é a Santidade. Três vezes Santo. Santo, Santo, Santo. Santo, na língua hebraica, diz-se qadôsh, cujo significado mais consistente é “separado”. Separado de quê ou de quem, podemos perguntar. Da sua criação? Parece que não, pois o Deus da Bíblia olha para ela e por ela com beleza e bondade. De nós? Obviamente não, pois o Deus da Bíblia bem vê e vê bem os seus filhos queridos, ouve a nossa voz, conhece as nossas alegrias e tristezas, desce ao nosso nível e debruça-se sobre nós com carinho. “Separado” de quê ou de quem, então? “Separado” de si mesmo, eis a surpreendente identidade de Deus. “Separado” de si mesmo, isto é, não agarrado ao seu mundo divino e dourado para o defender ciosamente. Ao contrário, o nosso Deus é um Deus que sai de si por amor, para, por amor, vir ao nosso encontro. É esta realidade que se vê bem em toda a Escritura, Antigo e Novo Testamento. Paulo, na 2ª Carta aos Coríntios, resume bem esta realidade ao falar de Jesus Cristo que, “sendo rico se fez pobre por causa de nós, para nos enriquecer com a sua pobreza” (8,9). (...)
Note-se ainda que, na mentalidade e na língua hebraica, “felizes” ou “bem-aventurados” diz-se ’ashrê, derivação do verbo ’ashar, que significa “pôr-se a caminho”. Extraordinária maneira de designar os “bem-aventurados” como pioneiros, aqueles que abrem caminhos novos e bons e de vida nova e boa para o mundo. E é verdade por paradoxal que pareça. Foram e continuam a ser os Santos e os Pobres os que verdadeiramente abrem caminhos novos neste mundo enlatado, saciado, enjoado, dormente e anestesiado em que vivemos.
Por que será que os Santos se esforçaram tanto, e com tanta alegria, por ser pobres e humildes, e nós nos esforçamos tanto, e com tristeza (Mt 19,22; Mc 10,22; Lc 18,23), por ser ricos e importantes?” (António Couto).