Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal - 2024


«Todos os que estavam na sinagoga, tinham os olhos fixos n’Ele» (Lc 4, 20). Não cessa de nos impressionar esta passagem do Evangelho, que nos leva a visualizar a cena, a imaginar aquele momento de silêncio com todos os olhares voltados para Jesus, num misto de maravilha e desconfiança. Entretanto, sabemos como tudo terminou: depois de Jesus ter desmascarado as falsas expetativas de seus conterrâneos, estes «enche­ram-se de furor» (Lc 4, 28), saíram da sinagoga e expulsaram-No da cidade. Os olhos estiveram fixos em Jesus, mas os seus corações não estavam dispostos a mudar, à sua palavra. Assim perderam a ocasião da sua vida.

Contudo na noite de hoje, Quinta-feira Santa, acontece uma troca de olha­res diferente. Protagonista é o primeiro Pastor da nossa Igreja, Pedro. Inicialmente também ele não deu crédito à palavra do Senhor, que o desmascarava: «Tu negar-Me-ás três vezes» (Mc 14, 30). Assim «perdeu de vista» Jesus, e renegou-O ao cantar do galo. Mas depois, «voltando-Se, o Senhor fixou os olhos nele; e Pedro recordou-se da palavra do Senhor (…). E, vindo para fora, chorou amargamente» (Lc 22, 61-62). Os seus olhos acabaram inundados de lágrimas que, brotando dum coração ferido, o li­bertaram de falsas certezas e justificações. Aquele choro amargo mudou-lhe a vida.

Ano após ano, as palavras e os gestos de Jesus não conseguiram mudar as expetativas de Pedro, aliás semelhantes às do povo de Nazaré: também ele esperava um Messias político e poderoso, forte e resoluto, e confrontado com o escândalo dum Jesus frágil, preso sem opor resistência, declarou: «Não O conheço» (Lc 22, 57). E era verdade! Não O conhecia… Começou a conhecê-Lo quando, na noite do renegamento, deixou espaço às lágrimas da vergonha, às lágrimas do arrependimento. E vai conhecê-Lo verdadei­ramente, quando, «triste por Jesus lhe ter perguntado, à terceira vez: “Tu és deveras meu amigo?”», se deixará penetrar plenamente pelo olhar de Jesus. Então, daquele «não O conheço», passará a dizer: «Senhor, tu sabes tudo» (Jo 21,17).

Queridos irmãos sacerdotes, verificam-se a cura do coração de Pedro, a cura do Após­tolo, a cura do Pastor, quando, feridos e arrependidos, se deixam perdoar por Jesus; passam através das lágrimas, daquele pranto amargo, do sofrimento que permite re­descobrir o amor. Por isso senti o desejo de partilhar convosco qualquer pensamento sobre um aspeto, bastante negligenciado, mas essencial da vida espiritual; proponho-o hoje com uma palavra talvez insólita, mas creio que nos fará bem voltar a descobrir: a compunção.

A palavra evoca o picar: a compunção é «uma aguilhoada no coração», um trespassa­mento que o fere, fazendo brotar as lágrimas do arrependimento. Pode-nos ajudar aqui um episódio, que tem a ver ainda com São Pedro. Trespassado pelo olhar e as palavras de Jesus ressuscitado, purificado e inflamado pelo Espírito, no dia de Pente­costes proclamou aos habitantes de Jerusalém: «Deus estabeleceu como Senhor e Messias esse Jesus por vós crucificado» (At 2, 36). Os presentes, «quando ouviram es­tas coisas – diz o texto – sentiram o coração trespassado» (At 2, 37), dando-se conta do mal que tinham feito e, simultaneamente, da salvação que o Senhor lhes concedia.

Vemos aqui o que é a compunção: não um sentimento de culpa que te lança por terra, nem uma série de escrúpulos que paralisam, mas é uma picada benéfica que queima intimamente e cura, pois o coração, quando se dá conta do próprio mal e se reconhece pecador, abre-se, acolhe a ação do Espírito Santo, como água viva que o muda a ponto de lhe correrem as lágrimas pelo rosto. Quem retira a máscara e se deixa olhar por Deus no coração, recebe o dom de tais lágrimas, as águas mais santas depois das do Batismo. Amados irmãos sacerdotes, são estes os votos que vos faço hoje.

Entretanto é preciso compreender bem o que significa chorar por nós próprios. Não significa sentir pena de nós, como muitas vezes somos tentados a fazer. Isso acontece, por exemplo, quando estamos dececionados ou preocupados com as nossas expetati­vas goradas, com a falta de compreensão por parte dos outros, talvez dos irmãos e dos superiores. Ou quando nos deleitamos, por um estranho e doentio prazer do espírito, a repassar as injustiças sofridas para sentirmos pena de nós mesmos, pensando que não nos deram o merecido e imaginando o futuro reservando-nos de contínuo apenas surpresas negativas. Como nos ensina São Paulo, esta é a tristeza segundo o mundo, oposta à tristeza segundo Deus.

Diversamente chorar por nós próprios é arrepender-nos seriamente de ter entristecido a Deus com o pecado; reconhecer que diante d’Ele sempre estamos em débito, nunca em crédito; admitir que se perdeu o caminho da santidade, não tendo confiado no amor d’Aquele que deu a vida por mim. É olhar para dentro de mim e sentir pesar pela minha ingratidão e inconstância; meditar com tristeza nos meus fingimentos e falsida­des; descer aos meandros da minha hipocrisia, a hipocrisia clerical: amados irmãos, aquela hipocrisia na qual escorregamos tanto… tanto. Tende cuidado com a hipocrisia clerical! Para em seguida erguer o olhar para o Crucificado e deixar-me comover pelo seu amor que sempre perdoa e eleva, que nunca deixa frustradas as esperanças de quem n’Ele confia. Assim as lágrimas continuarão a cair, e purificam o coração.

De facto, a compunção requer esforço, mas restitui a paz; não provoca angústia, mas alivia a alma dos seus pesos, porque intervém na ferida deixada pelo pecado, prepa­rando-nos para receber lá mesmo a carícia do Senhor, que transforma o coração quando está «contrito e arrependido» (Sal 51, 19), amolecido pelas lágrimas. Assim a compunção é o antídoto para a esclerocardia, aquela dureza do coração frequente­mente denunciada por Jesus (Mc 3, 5; 10, 5). Na verdade, o coração sem arrependi­mento nem lágrimas, torna-se rígido: primeiro, torna-se rotineiro, em seguida intole­rante com os problemas e indiferente às pessoas, depois frio e quase impassível, como se estivesse envolvido por uma concha inquebrável, e finalmente coração de pedra. Mas, assim como a água, gota a gota, escava a pedra, as lágrimas lentamente escavam os corações endurecidos. Deste modo assiste-se ao milagre da tristeza, da tristeza boa que leva à doçura.

Compreendemos então por que motivo insistem na compunção os Mestres espirituais. São Bento convida-nos todos os dias a «confessar a Deus com lágrimas e gemidos os nossos pecados passados» e, quando rezamos – afirma ele –, «não seremos ouvidos pelas nossas palavras, mas pela pureza do coração e pela compunção que arranca as lágrimas». E enquanto São João Crisóstomo defende que uma única lágrima apaga um braseiro de pecados, a Imitação de Cristo recomenda: «Abandona-te à compunção do coração», pois muitas vezes, «pela leviandade do coração e pelo descuido dos nossos defeitos, não nos apercebemos dos males da nossa alma». O remédio é a compunção, porque nos reconduz à verdade de nós mesmos, de tal modo que a profundidade do nosso ser pecador revele a realidade infinitamente maior do nosso ser perdoado, a alegria de ser perdoado. Por isso não surpreende a afirmação de Isaque de Nínive: «Quem esquece a medida dos próprios pecados, esquece a medida da graça de Deus para com ele».

A verdade, amados irmãos e irmãs, é que cada um dos nossos renascimentos interio­res brota sempre do encontro entre a nossa miséria e a sua misericórdia – encontram-se a nossa miséria e a sua misericórdia –, passa através da nossa pobreza de espírito que permite ao Espírito Santo enriquecer-nos. A esta luz, compreendem-se as afirma­ções fortes de muitos Mestres espirituais. Pensemos nestas palavras paradoxais do já referido Santo Isaac: «Aquele que conhece os seus próprios pecados (…) é maior do que aquele que, com a oração, ressuscita os mortos. Aquele que chora por si mesmo uma hora é maior do que quem serve o mundo inteiro com a contemplação (…). Aque­le a quem é concedido conhecer-se a si mesmo é maior do que aquele a quem é dado ver os anjos». 

Irmãos, pensemos em nós, sacerdotes, e interroguemo-nos quão presente estejam a compunção e as lágrimas no nosso exame de consciência e na nossa oração. Pergun­temo-nos se, com o passar dos anos, aumentam as lágrimas. Sob este aspeto, é bom suceder o contrário do que acontece na vida biológica: nesta, quando se cresce, chora-se menos do que em criança. Mas, na vida espiritual, onde o que conta é tornar-se criança (cf. Mt 18, 3), quem não chora retrocede, envelhece interiormente, ao passo que a pessoa que chega a uma oração mais simples e íntima, feita de adoração e co­moção diante de Deus: isso amadurece-nos. Prende-se cada vez menos a si mesma e mais a Cristo, e torna-se pobre em espírito. Deste modo sente-se mais próxima dos pobres, os prediletos de Deus, que antes – como escreve São Francisco no seu testa­mento – mantinha afastados, porque estava no pecado, mas cuja companhia, depois, de amarga se torna doce». E assim, quem está compungido no coração, sente-se cada vez mais irmão de todos os pecadores do mundo, sente-se mais irmão, sem qualquer aparência de superioridade nem dureza de juízo, mas sempre com desejo de amar e reparar.

E esta, amados irmãos é outra caraterística da compunção: a solidariedade. Um cora­ção dócil, liberto pelo espírito das Bem-aventuranças, tende naturalmente a sentir compunção pelos outros: em vez de se irritar e escandalizar pelo mal feito pelos ir­mãos, chora pelos pecados deles. Não se escandaliza. Cumpre-se uma espécie de revi­ravolta: a tendência natural de ser indulgente consigo mesmo e inflexível com os ou­tros inverte-se e, pela graça de Deus, a pessoa torna-se exigente consigo mesma e mi­sericordiosa com os outros. E o Senhor procura, especialmente entre as pessoas que Lhe estão consagradas, quem chore os pecados da Igreja e do mundo, fazendo-se ins­trumento de intercessão por todos. Na Igreja, temos tantas testemunhas heroicas que nos mostram este caminho. Pensemos nos monges do deserto, no Oriente e no Oci­dente; na intercessão contínua de São Gregório de Narek, feita de gemidos e lágrimas; no oferecimento de Francisco pelo Amor não amado; nos sacerdotes, como o Cura d'Ars, que viviam de penitência pela salvação dos outros. Amados irmãos, isto não é poesia; isto é sacerdócio!

Queridos irmãos, a nós – seus Pastores –, o Senhor não pede juízos de desprezo contra quem não crê, mas amor e lágrimas por quem vive afastado. Quando as situações difí­ceis que vemos e vivemos, a falta de fé, os sofrimentos que tocamos, entram em con­tacto com um coração compungido, decididamente não suscitam a polémica, mas a perseverança na misericórdia. Quanto precisamos de ser libertos de durezas e recrimi­nações, de egoísmos e ambições, de rigidezes e insatisfações, para nos confiar e entre­gar a Deus, encontrando n’Ele uma paz que salva de toda a tempestade! Adoremos, intercedamos e choremos pelos outros: permitiremos assim que o Senhor realize ma­ravilhas. E não temamos! Ele surpreende-nos sempre…

De tudo isso beneficiará o nosso ministério. Hoje, numa sociedade laica, corremos o risco de ser muito ativos e, ao mesmo tempo, sentir-nos impotentes, com o resultado de perdermos o entusiasmo e sermos tentados a «deixar de remar», fechar-nos em lamentos e fazer prevalecer a grandeza dos problemas sobre a grandeza de Deus. Se isto acontecer, tornamo-nos amargos e pungentes, sempre a criticar, encontrando sempre qualquer ponto para se lamentar. Se, pelo contrário, a amargura e a compun­ção se voltarem, não para o mundo, mas para o próprio coração, o Senhor não deixará de nos visitar e reerguer. Como nos exorta a Imitação de Cristo: «Não carregues dentro de ti os assuntos dos outros, nem te preocupes com o que fazem as pessoas mais im­portantes; em vez disso, vigia sempre em primeiro lugar sobre ti e dirige a tua adver­tência particularmente a ti mesmo, em vez de outras pessoas, mesmo queridas. Não fiques triste, se não recebes o favor dos homens; o que, ao invés, te deve pesar, entris­tecer é a constatação de não estar totalmente e com segurança no caminho do bem».

Por último, quero sublinhar um aspeto essencial: a compunção, mais do que fruto do nosso exercício, é uma graça e como tal deve ser pedida na oração. O arrependimento é dom de Deus, é fruto da ação do Espírito Santo. Para facilitar o seu crescimento, par­tilho duas pequenas recomendações. A primeira é não olhar a vida e a vocação numa perspetiva de eficiência e imediatismo, ligada apenas ao dia de hoje e às suas urgên­cias e expetativas, mas olhá-las no arco englobando passado e futuro como um todo: no passado, para recordar a fidelidade de Deus – Deus é fiel –, fazendo memória do seu perdão, ancorando-nos ao seu amor; e no futuro, para pensar na meta eterna a que somos chamados, no fim último da nossa existência. Alargar os horizontes, ama­dos irmãos, alargar os horizontes ajuda a dilatar o coração, incentiva a reentrar em nós mesmos com o Senhor e viver a compunção. Uma segunda recomendação, que vem como consequência da anterior: descubramos a necessidade de nos dedicarmos a uma oração que não seja obrigatória e funcional, mas livre, calma e prolongada. Irmão, co­mo é a tua oração? Voltemos à adoração – tens-te esquecido de adorar? – e voltemos e à oração do coração. Repitamos: Jesus, Filho de Deus, tende piedade de mim, peca­dor. Sintamos a grandeza de Deus na nossa baixeza de pecadores, para olharmos para dentro de nós mesmos e nos deixarmos trespassar pelo seu olhar. Descobriremos a sabedoria da Santa Mãe Igreja, que nos introduz na oração sempre com a invocação do pobre que clama: Senhor, apressai-Vos a socorrer-me.

Por fim, queridos irmãos, voltemos a São Pedro e às suas lágrimas. O altar colocado sobre o seu túmulo não pode deixar de nos fazer pensar nas inúmeras vezes que, ape­sar de ali dizermos cada dia «Tomai todos e comei: Isto é o meu Corpo oferecido em sacrifício por vós»; quantas vezes desiludimos e entristecemos Aquele que nos ama até ao ponto de fazer das nossas mãos os instrumentos da sua presença! Portanto, é bom fazer nossas estas palavras que recitamos em surdina durante a Santa Missa: «Em hu­mildade e contrição, sejamos recebidos por Vós, Senhor…» e ainda: «Lavai-me, Senhor, da minha iniquidade, e purificai-me do meu pecado». Em tudo, irmãos, sirva-nos de consolação a certeza que nos é dada hoje pela Palavra: o Senhor, consagrado com a unção (cf. Lc 4, 18), veio «curar os quebrantados de coração» (Is 61, 1). Então, se o coração se despedaçar, pode ser faixado e curado por Jesus. Obrigado, queridos sacer­dotes, obrigado pelo vosso coração aberto e dócil; obrigado pelas vossas fadigas e obrigado pelo vosso pranto; obrigado porque levais a maravilha da misericórdia – per­doai sempre, sede misericordiosos – e levai esta misericórdia, levai Deus aos irmãos e irmãs do nosso tempo. Que o Senhor vos console, confirme e recompense! Obrigado!

Papa Francisco, 28 de Março, 2024