MEDITAR DIA E NOITE NA LEI DO SENHOR
E VIGIAR EM ORAÇÕES
O BILHETE DE IDENTIDADE DO CARMELO
O número 10 da Regra Carmelita teve muito peso e influência na história da Ordem. Por causa dele o Carmelo tornou-se sinónimo de lugar de oração. Oração e meditação não são uma actividade ao lado das outras, mas são a própria vida do Carmelo. Não são um ladrilho ao lado dos outros, mas são a parede que sustenta todos os ladrilhos. Este número 10 tem quatro pontos que merecem a nossa atenção: 1) permanecer na cela ou junto dela; 2) meditar na lei do Senhor e vigiar em orações; 3) dia e noite; 4) a não ser que estejam ocupados em outros justificados afazeres.
A permanência nas celas
No início, tratava-se de grutas separadas, espalhadas pelas encostas do Monte Carmelo, como o atestam as antigas pinturas e os relatos dos peregrinos daquela época. Até hoje, lá no Monte Carmelo, ao redor das ruínas da primeira capela, perto da fonte de Elias, ainda existem algumas destas antigas grutas. Mais tarde, depois do retorno para a Europa em 1238, as celas eram os quartos dos conventos. A cela ou o quarto oferece o espaço físico da solidão. É o elemento eremítico, sempre retomado na tradição carmelitana. A cela é símbolo também da “cela interior”, para a qual deve ser recolhida a mente dispersa. A solidão material sem esta solidão interior não vale e não tem sentido. A cela interior deve ser criada e alimentada através da permanência na cela material.
Meditar na Lei do Senhor e vigiar em orações
Originalmente, na Bíblia, a Lei do Senhor era o Pentateuco, os primeiros cinco livros do AT, também chamados os cinco livros de Moisés. Aqui na Regra, o seu sentido é mais amplo e indica a Bíblia inteira, lida a partir do Evangelho. O Senhor é Jesus. A Lei de Jesus é o Evangelho. Vigiar em orações é estar atento, com a mente sempre voltada para Deus. Meditando na Lei do Senhor, escutamos a Palavra que Deus nos tem a dizer. Vigiando em orações, damos a Ele a nossa resposta. Assim imitamos os apóstolos, cuja vida se resumia numa "dedicação total à oração e ao serviço da palavra" (At 6,4). Assim, pouco a pouco, se começa a ver tudo à luz de Deus.
Dia e noite
Isto é, sempre, mesmo quando não se está na cela. Aqui não há nenhuma ressalva. Ninguém nos pode dispensar desta actividade básica. Quando as outras actividades cessam, é ela, a meditação da Palavra e a oração, que permanece e reaparece como que naturalmente. É a vida na solidão, enchida pela presença da Palavra do Senhor. Dia e noite indica também o ritmo do tempo e da natureza, reflexo da Palavra criadora de Deus. O carmelita, a carmelita, é chamado(a) a abrir-se para a acção da Palavra criadora e recriadora de Deus e deixar-se marcar pelo seu ritmo, como sístole e diástole do ritmo do coração.
A não ser que deva ocupar-se em outros justificados afazeres
Esta ressalva refere-se, não à meditação e à oração, mas sim à permanência nas celas. Naquele tempo, os justificados afazeres eram, por exemplo, as romarias, o trabalho na roça, tratar dos animais, as saídas para a evangelização. Hoje, os justificados afazeres que permitem ou obrigam sair da cela são outros. No dia 15 de Fevereiro de 1432, o papa Eugénio IV ajudou a entender a expressão justificados afazeres. Ele abrandou o sentido e disse: “Vocês podem, em horas convenientes, licita e livremente permanecer nas suas igrejas, nos seus claustros e âmbitos, e por aí locomover-se”.
Tudo isto que Alberto pede no número 10 da Regra vem da grande tradição monacal que aqui se prolonga. Quando na família carmelitana há ameaça de se esquecer este elemento eremítico, então, de dentro da Ordem, de onde menos se espera, surge sempre a reacção, exigindo uma volta para esta solidão.
Meditação e vigilância
Dentro de nós existe uma fonte que jorra para a vida eterna (Jo 4,14). É o dom do Espírito Santo que reza e actua em nós (Jo 7,37-39), querendo colocar-nos ao serviço de Deus e dos irmãos. Esta fonte ficou encoberta por muitas camadas de sujeira: distracções, apegos, acomodação, alienação, auto-satisfação, etc. São João da Cruz descreve estes enganos e desenganos com perfeição na “Subida do Monte Carmelo” e na “Noite Escura”. O esforço constante deve ser: “recolher-se na cela”, recolher-se da distracção e da alienação em que costumamos viver, desapegar do apego, incomodar o acomodado ou, como diz Jesus, perder a vida para poder possuí-la. Assim, aos poucos, o acesso à fonte vai ser desobstruído e a água poderá inundar livremente a vida. É a graça da oração que nos ajuda a fazer a Subida do Monte Carmelo.
Elias se escondeu na torrente Karit. O carmelita, a carmelita, se esconde na cela, não para fugir do mundo ou porque tem medo, mas para estar no mundo sem ser do mundo (Jo 17,14-16). Vivendo junto dos córregos da Palavra de Deus, esta Palavra se torna a nossa morada, a nossa cela, na qual devemos permanecer dia e noite. Ruminando e meditando a Lei do Senhor, a Palavra entra em nós, como a água entra na árvore plantada junto dos córregos (Sl 1,3; Jr 17,8). Aos poucos, nasce em nós uma nova maneira de ver e de julgar. O próprio Jesus vai abrindo nossos olhos e nos revela a sua presença no pequeno, no marginalizado, lá onde ninguém o procura.
Maria meditava e ruminava todas as coisas no seu coração e, assim, ia descobrindo a presença da Palavra de Deus em tudo o que acontecia. Melhor do que qualquer outro, ela compreendeu que a Lei do Senhor, a Lei suprema, é o amor. Deixando-se invadir pelo amor, pôde reconhecer, acolher e encarnar a Palavra em sua vida e tornar-se a sua servidora. Ela vigiava em oração para guardar e fazer irradiar o que tinha descoberto na ruminação.
Na história do Brasil, os grileiros foram ocupando as terras dos posseiros, formando o latifúndio, impedindo que grande parte da população tenha acesso aos bens necessários para poder levar uma vida digna de gente. O mesmo acontece na história pessoal. Dentro de cada um de nós existe um falso eu, o ego, o eu grileiro, que tenta tomar conta de tudo e procura manter o domínio, oprimindo e marginalizando o posseiro, o eu verdadeiro. A meditação da palavra, dia e noite, contribui para expulsar o grileiro que ocupou todo o espaço dentro de mim, e libertar o posseiro que vive escondido e marginalizado dentro de mim. O eu verdadeiro é onde Deus se revela à consciência das pessoas.
O objectivo da Meditação da Lei do Senhor é para, aos poucos, ir mudando a visão que nós temos das coisas, das pessoas, da vida, e receber a visão de Deus que faz enxergar diferente, agir diferente, e ajuda a criar alternativas concretas. Meditação e vigília fazem com que dentro de nós morra o “velho homem”; fazem com que o pensamento dominante da sociedade seja criticado e anulado, e renasça em nós uma nova visão da vida. Condição para isto é que se esteja do lado dos “menores”, ou como hoje ensina a Igreja: que se faça seriamente a opção pelos pobres.
O uso da Bíblia na descrição do ideal do Carmelo
A expressão “meditar dia e noite na Lei do Senhor” vem do Salmo (Sl 1,2). Vem ainda do livro de Josué (Js 1,8). A expressão “vigiar em orações” vem de Lucas 21,36. A mesma recomendação ocorre várias vezes nas cartas de Paulo (Ef 6,18; Col 4,2) e de Pedro (1 Pd 4,7). Para quem conhece a Bíblia de memória, cada texto traz consigo o seu contexto. Quem evoca um texto, evoca também o contexto, em que este texto está situado. Vejamos de perto o contexto:
Meditar dia e noite na lei do Senhor
O Salmo 1,2 menciona a meditação na lei do Senhor para descrever o modelo da pessoa justa. É meditando dia e noite na lei do Senhor, que tal pessoa se torna como uma árvore, plantada junto dos córregos, que dá fruto no tempo devido; suas folhas nunca murcham e tudo que faz será bem sucedido.
Josué recebe a ordem de Moisés para meditar dia e noite na lei do Senhor (Js 1,8). É para ele poder ser “forte e corajoso” (Js 1,9) e ser bem sucedido na sua missão de introduzir o povo na terra prometida e garantir, assim, a liberdade conquistada na saída do Egipto.
Vigiar em orações
No seu último discurso, Jesus recomendou aos discípulos que vigiassem sempre em oração (Lc 21,36). Um pouco mais tarde, ele mesmo, o próprio Jesus, lá no Horto das Oliveiras, mostrou o que significa “vigiar em oração”. Rezou e vigiou até o seu suor transformar-se em sangue (Lc 22,39-44). A carta aos Hebreus comenta e explica: “Nos dias da sua vida terrestre, Jesus apresentou pedidos e súplicas, com veemente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte, e foi atendido por causa da sua obediência!” (Hb 5,7).
Paulo pede que as comunidades vigiem em oração e orem também por ele para que possa anunciar bem a Boa Nova (Ef 6,18-20; Col 4,2-4). E Pedro pede para a comunidade levar uma vida de auto-domínio e de sobriedade, dedicada à oração, pois o fim está próximo (1Pd 4,7).
Assim, quanto mais uma pessoa conhecer a Bíblia, tanto mais perceberá o contexto que é evocado pelas citações e evocações da Bíblia na Regra. A leitura orante diária da Bíblia, ajudará a perceber melhor todo o sentido e alcance da Regra para a vida, e fará perceber que a própria Regra é fruto de uma leitura assídua e constante da Bíblia. Com efeito, a Regra usa a Bíblia livremente. Por exemplo, neste número 10, formou uma única frase com um texto do AT e outro do NT para expressar o pensamento não da Bíblia, mas sim de Alberto e dos primeiros carmelitas. A Palavra de Deus estava na boca e no coração, e tudo que diziam e escreviam era feito na palavra do Senhor (Rc 19).
O Autor da Regra conhecia a Bíblia de memória e a assimilou em sua vida a ponto de já não distinguir entre as suas próprias palavras e as da Bíblia. Ele exprime o seu próprio pensamento com frases tiradas da Bíblia. Quando dizemos Autor da Regra, pensamos tanto em Santo Alberto como nos primeiros carmelitas. Foi Alberto que assinou a Regra e assumiu a sua autoria. Mas ele mesmo diz que o seu texto é fruto da proposta que lhe foi apresentada pelos carmelitas (Rc 3). Assim, no uso que a Regra faz da Bíblia transparece como os nossos primeiros irmãos carmelitas usavam a Bíblia.
O ensinamento que a Regra nos dá não está só naquilo que ela ensina sobre a leitura da Bíblia, mas também na maneira como ela mesma usa a Bíblia. A Regra do Carmo não só recomenda a leitura da Bíblia, mas também a pratica e dela é o resultado. Ela soube encarnar a Palavra de Deus a ponto de assumi-la como sua. Parafraseando a expressão do apóstolo Paulo (Gál 2,20) os primeiros carmelitas poderiam dizer a todos nós: “Nós falamos pela Regra a vocês, mas já não somos nós, é a própria Palavra de Deus que fala por nós!”.
Carlos Mesters, O. Carm.