A MÍSTICA QUE DEVE ANIMAR A LEITURA ORANTE DA BÍBLIA
Em dez pontos procuramos resumir tudo o que dissemos, até agora, sobre o método e a mística da Leitura Orante da Bíblia. O texto que aqui apresentamos teve uma longa história. Foi elaborado, primeiro, para ajudar os noviços carmelitas na leitura da Bíblia. Foi publicado na coleção “Horizontes” sobre o Carisma Carmelitano. Com algumas modificações, foi integrado no Volume 1 do Projeto “Tua Palavra é Vida”. Foi publicado e divulgado pela CRB como folheto separado. Finalmente, após ter recebido uma boa revisão pela equipe, foi publicado no Volume final do Projeto “Tua Palavra é Vida”. Reintroduzimos aqui as referências à Regra do Carmo que estavam na primeira redação. Usamos os números da nova enumeração.
1. "Faça-se em mim segundo a tua palavra!"
Ao iniciar a Leitura Orante da Bíblia, você não vai estudar; não vai ler a Bíblia para aumentar o seu conhecimento nem para preparar algum trabalho apostólico; não vai ler para ter experiências extraordinárias. Mas vai ler a Palavra de Deus para escutar o que Deus lhe tem a dizer, para conhecer a Sua Vontade e, assim, viver melhor em obséquio de Jesus Cristo (Rc 2). Em você deve estar a pobreza; deve estar a disposição que o velho Eli recomendou a Samuel: "Fala, Senhor, que teu servo escuta!" (1Sm 3,10). Deve estar a mesma atitude obediente de Maria diante da Palavra: “Faça-se em mim segundo a Tua Palavra!” (Lc 1,38).
2. Pedir o Espírito Santo: "Pedi e recebereis!"
Poder escutar a Deus não depende de você nem do esforço que fará, mas só e unicamente de Deus, da Sua decisão gratuita e soberana de entrar em contato com você e de fazer com que você possa ouvir a Sua voz. O ponto de partida da Leitura Orante deve ser a humildade. Saber recolher-se à sua própria pequenez e dignidade. Para isto é necessário que você se prepare, vigiando em orações (Rc 10), pedindo que Ele mande o seu Espírito. Pois sem a ajuda do Espírito de Deus, não é possível descobrir o sentido que a sua Palavra tem para nós hoje (cf Jo 14,26; 16,13; Lc 11,13).
3. Criar um ambiente de recolhimento e de escuta
É importante criar um ambiente adequado que favoreça o recolhimento diante da Palavra de Deus. Ler a Bíblia é como conversar com uma amiga. As duas, tanto a conversa como a leitura, exigem o máximo de atenção, respeito, amizade, entrega e escuta atenta. Para isto você deve aprender a cultivar dentro de você o silêncio (Rc 21), recolher-se dentro da sua cela interior (Rc 10), durante todo o tempo da Leitura Orante. E lembre-se: uma boa e digna posição do corpo favorece o recolhimento da mente.
4. Receber a Bíblia como o Livro da Igreja e da Tradição da Vida Religiosa
Abrindo a Bíblia, você deve estar bem consciente de que está abrindo um livro que não é seu mas sim da comunidade. Fazendo a Leitura Orante, você está entrando no grande rio da Tradição da Igreja que atravessa os séculos. A Leitura Orante é o barquinho que o carrega pelas curvas deste rio até ao mar. O clarão luminoso que nos vem do mar já clareou a "noite escura" de muita gente. Mesmo fazendo sozinho, sozinha, a Leitura Orante da Bíblia, você não está só, mas estará unido aos irmãos e às irmãs que, antes de você, procuraram "meditar dia e noite na lei do Senhor" (Rc 10). São muitos! Mesmo aqueles e aquelas que não sabiam ler o texto escrito! Eles sabiam ler o texto da vida e dos acontecimentos no rosto dos irmãos e das irmãs. Por isso, “permaneça firme naquilo que aprendeu e aceitou como certo. “Você sabe de quem o aprendeu!” (2 Tim 3,14).
5. Ter uma correta atitude diante da Bíblia
A leitura atenta e proveitosa da Bíblia deve estar marcada, do começo ao fim, por uma atitude interpretativa que tem três aspectos básicos: Leitura, Meditação e Oração. Estes três aspectos formam a marca registrada e a espinha dorsal da Vida Religiosa, culminando na Contemplação:
1º ASPECTO: Leitura: conhecer, respeitar, situar. Antes de tudo, você deve ter sempre a preocupação de investigar: "O que o texto diz em si?". Isto exige que se faça silêncio (Rc 21). Dentro de você tudo deve silenciar, para que nada o impeça de escutar o que texto tem a dizer, e para que não aconteça que você leve o texto a dizer só aquilo que você gosta de escutar. Neste ponto, o estudo da Bíblia, feito a partir de um bom método, pode ser de grande ajuda.
2º ASPECTO: Meditação: ruminar, dialogar, atualizar. Você também deve ter sempre a preocupação de se perguntar: "O que o texto diz para mim, para nós?" Este segundo aspecto pede que você entre em diálogo com o texto, para que o sentido se atualize e penetre sua vida. Como Maria, rumine o que escutou (Lc 2,19.51) e, assim, descobrirá que “a Palavra está muito perto de você: está na sua boca e no seu coração, para que a ponha em prática” (Dt 30,14; Rc 19).
3º ASPECTO: Oração: suplicar, louvar, recitar. Além disso, você deve estar sempre preocupado, preocupada, em descobrir: "O que o texto me faz dizer a Deus?" É a hora da prece, o momento de vigiar em orações (Rc 10). Até agora, Deus falou para você; chegou a hora de você responder a Ele.
6. Colocar-se sob o julgamento da Palavra de Deus
Fazer Meditação não é o mesmo que ficar sentado, sem fazer nada, mas é o momento forte do confronto entre a vontade de Deus e as próprias aspirações. Guigo dizia: “A Meditação é uma diligente atividade da mente que, com a ajuda da própria razão, procura o conhecimento da verdade oculta”. Meditar é fazer o que fazia o filho pródigo quando estava longe da casa do Pai:
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é cair em si e confrontar-se com a vida na Casa do Pai, com a Palavra de Deus;
- é olhar a própria vida com os olhos do Pai, levar em conta o ponto de vista da outra, do outro;
- é conversar muito com Deus e com os pobres, pois conversa bem grande produz conversão;
- é confrontar as aspirações pessoais com a proposta do ideal do Carmelo;
- é aprender a situar-se dentro do projeto de Deus que se revela na Bíblia e na vida;
- é resolver mudar de idéia e de vida, por mais doloroso que seja;
- é erguer-se e decidir voltar para o Pai, para os irmãos e as irmãs.
7. Ponto de chegada da Leitura Orante: olhar tudo com os olhos de Deus
Contemplação não é o mesmo que ficar longe do mundo. Guigo dizia: “A leitura leva a comida à boca, a meditação a mastiga e rumina, a oração prova o seu gosto e a contemplação é a própria doçura que alegra e recria”. A Contemplação é enxergar, saborear, agir,
é ter no peito pensamentos santos que nascem do livro santo (Rc 19), e nos olhos algo da "sabedoria que leva à salvação" (2Ts 3,15);
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é começar a ver o mundo e a vida com os olhos dos pobres, com os olhos de Deus;
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é você assumir a própria pobreza e eliminar do seu modo de pensar aquilo que vem dos poderosos;
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é tomar consciência de que muita coisa, da qual você pensava que fosse fidelidade ao Evangelho e à Tradição da sua Congregação, na realidade nada mais era do que fidelidade a você mesma(o) e aos seus próprios interesses e idéias;
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é saborear, desde já, algo do amor de Deus que supera todas as coisas;
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é mostrar pela vida que o amor de Deus se revela no amor ao próximo;
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é fazer com que a palavra desça da boca para o coração e anime todas as nossas ações (Rc 19);
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é dizer sempre: “faça-se em mim segundo a tua Palavra” (Lc 1,38).
8. Procurar por todos os meios que a interpretação seja fiel
Para que a sua Leitura Orante não fique entregue só às conclusões dos seus próprios sentimentos, pensamentos ou caprichos, mas tenha uma firmeza maior e seja realmente fiel, é importante você levar em conta três exigências fundamentais:
1ª EXIGÊNCIA: confrontar com a fé da Comunidade Eclesial. Confronte sempre o resultado da sua Leitura com a fé da Igreja viva, com a comunidade a que você pertence. Do contrário, poderia acontecer que o seu esforço não leve você a canto nenhum (Gl 2,2). Pois é lá, na pequena comunidade eclesial, alimentada e sustentada pela Palavra de Deus (Rc 7, 11 e 14), que nasce a fé da Igreja como da pequena fonte nasce o rio que irriga a terra.
2ª EXIGÊNCIA: confrontar com a realidade. Confronte sempre aquilo que você lê na Bíblia com a realidade que hoje vivemos. Quando a Leitura Orante não alcança o seu objetivo na nossa vida, a causa nem sempre é falta de oração, falta de atenção à fé da Igreja, ou falta de estudo crítico do texto. Muitas vezes, é simplesmente falta de atenção à realidade nua e crua que hoje vivemos. Quem vive na superficialidade, sem aprofundar sua vida, não pode atingir a fonte de onde nasceu a Escritura.
3ª EXIGÊNCIA: confrontar com o resultado da exegese. Confronte sempre as conclusões da sua leitura com os resultados do estudo que você faz da Bíblia. O estudo investiga o sentido da Letra. A Leitura Orante não pode ficar parada na Letra. Ela deve procurar o sentido do Espírito (2Cor 3,6). Mas querer estabelecer o sentido do Espírito sem fundamentá-lo na Letra é o mesmo que construir um castelo no ar (Santo. Agostinho). É cair no engano do fundamentalismo. Hoje em dia, em que tantas idéias novas se propagam, é muito importante ter bom senso. O bom senso se alimenta do estudo crítico da Letra e ajuda a integrar a Lectio Divina com o estudo sério da Bíblia.
9. Imitar o exemplo de São Paulo
O apóstolo Paulo, primeiro teólogo do cristianismo, soube reler a Bíblia a partir da sua fé na ressurreição de Jesus. Nas suas cartas, como bom intérprete das Escrituras Sagradas do seu povo, ele nos deixou vários conselhos de como ler a Bíblia (Rc 20). Eis algumas das normas e atitudes recomendadas ou observadas por ele:
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considere-se destinatário, destinatária, do que está escrito na Bíblia, pois tudo foi escrito para a nossa instrução (1Cor 10,11; Rm 15,4); a Bíblia é o nosso livro;
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procure ter nos olhos a fé em Jesus Cristo, pois é só pela fé em Jesus que o véu cai e que a Escritura revela o seu sentido e nos comunica a sabedoria que leva à salvação (2Cor 3,16; 2Tm 3,15);
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lembre-se: Paulo falava de "Jesus Cristo Crucificado" (1Cor 2,2), “escândalo para uns, loucura para outros”. Foi este Jesus que lhe abriu os olhos para perceber a Palavra viva de Deus no meio dos pobres da periferia de Corinto, onde a loucura e o escândalo da cruz estavam confundindo os sábios, os fortes e os que pensavam ser alguma coisa neste mundo (1Cor 1,21-31).
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a melhor carta de Deus é a Comunidade. O melhor texto é a vida comunitário! “Vocês são a carta de Cristo!” (2Cor 3,3). Pois é na comunidade viva que atua o Espírito transfigurando seus membros na imagem do próprio Jesus (2Cor 3,17-18);
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Paulo alerta contra o fundamentalismo que toma tudo ao pé da letra. Ele diz: “A letra mata, mas o Espírito dá vida” (2Cor 3,6). Sem a ação do Espírito, a Bíblia não passa de uma letra morta. Paulo tirou esta lição da sua própria experiência. Quando era fundamentalista, chegou a matar Estêvão (At 7,58; 8,1);
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tenha presente os problemas da sua vida pessoal e familiar, da sua família religiosa, das Comunidades, da Igreja e do povo a que você pertence e serve. Foi assim que Paulo relia e entendia a Bíblia: a partir dos problemas do povo das comunidades (1 Cor 10,1-13);
- Misture o eu e o nós; nunca só o eu, e nunca só o nós! O apóstolo também misturava, pois recebeu sua missão da comunidade de Antioquia e falava a partir dela (At 13,1-3; Gál 2,2).
10. Descobrir na Bíblia o espelho do que vivemos hoje
Ao ler a Bíblia tenha bem presente que o texto bíblico não é só uma janela, por onde você olha para saber o que aconteceu com os outros no passado; é também um espelho, um “símbolo” (Hb 11,19), onde você olha para saber o que está acontecendo hoje com você (1Cor 10,6-10). A leitura orante diária é como a chuva mansa que, aos poucos, vai amolecendo e fecundando o terreno (Is 55,10-11). Entrando em diálogo com Deus e meditando a sua Palavra (Rc 10), você cresce como a árvore plantada à beira dos córregos (Sl 1,3). Você não vê o crescimento, mas perceberá o seu resultado no encontro renovado consigo, com Deus e com os outros. Diz o canto: “É como a chuva que lava, é como o fogo que arrasa, Tua Palavra é assim, não passa por mim, sem deixar um sinal.” O objetivo último da Leitura Orante não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida. Não é conhecer o conteúdo do Livro Sagrado, mas sim, com a ajuda da Palavra escrita, descobrir, assumir, praticar e celebrar a Palavra viva que Deus fala hoje na sua vida, na nossa vida, na vida do povo, na realidade do mundo em que vivemos (Sl 95,7); é crescer na fé e, como o profeta Elias, experimentar, cada vez mais, que "Vivo é o Senhor, em cuja presença estou!" (1R 17,1;18,15).
Carlos Mesters O. Carm.