Fraternidade Carmelita

 A FRATERNIDADE CARMELITA

SEGUNDO A PRIMEIRA COMUNIDADE CRISTÃ

Durante estes dias, estando aqui no próprio lugar, experimentamos um pouco da atmosfera da comunidade dos primeiros cristãos. Na verdade, a Igreja sempre olhou para a vida da primeira comunidade cristã de Jerusalém: “Quando o coração dos crentes e a alma são uma só coisa, então a comunidade pode ser chamada Jerusalém” (Orígenes, Hom. Ez. 12, 2, 192).

A exemplaridade da comunidade de Jerusalém segundo os Actos dos Apóstolos

Na primeira comunidade cristã de Jerusalém procurava-se manter a forma de vida inspirada na do colégio apostólico, fundada sobre os apóstolos fortificados com o dom do Espírito do Pentecostes: “Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações. Perante os inumeráveis prodígios e milagres realizados pelos Apóstolos, o temor dominava todos os espíritos. Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um. Como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o templo, partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e tinham a simpatia de todo o povo. E o Senhor aumentava, todos os dias, o número dos que tinham entrado no caminho da salvação” (Act 2, 42-48).

Os Actos dos Apóstolos descrevem as características da primeira comunidade cristã de Jerusalém: um lugar de unidade e de amor. Seguramente a descrição do texto bíblico não fala somente de um acontecimento passado, mas indica o modelo e os critérios ideais para a Igreja que que se reúne à volta do Senhor. Os elementos fundamentais para cada comunidade cristã consistem na escuta do ensinamento dos apóstolos (acolhimento da Palavra), na união fraterna (um só coração e uma só alma), na fracção do pão (Eucaristia) e na oração (Act 2, 42). Mais do que a constatação dos factos históricos encontramos aqui uma proposta para uma vida exemplar como comunidade cristã.

Em Act 4, 32-35 a descrição é completada com as consequências dos aspectos fundamentais da vida da comunidade: “A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum. Com grande poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e uma grande graça operava em todos eles. Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um conforme a necessidade que tivesse”. A unidade dos fiéis exige logicamente a partilha da mesma fé, não só no sentido espiritual, mas também no material. O amor para com Deus e para com os irmãos e irmãs deve ser exprimido na caridade que se torna concreta na ajuda aos mais necessitados, no empenho social e na justiça.

Enfim, também os Actos dos Apóstolos não negam a realidade e a fragilidade humana. Em Act 5, 1-11 fala-se de uma fraude (Ananias e Safira) e em Act 15, 1-19 de um conflito, resolvido através do diálogo e do discernimento.

Da Jerusalém terrestre à nova Jerusalém

A cidade santa fascina não só os peregrinos e turistas do nosso tempo, como também foi sempre durante muitos séculos uma meta espiritual e atraente para os cristãos. No caso dos primeiros eremitas do Monte Carmelo trata-se seguramente de um facto mais existencial do que sentimental. Para ver melhor a relação entre as nossas origens e a cidade santa convém recordar o contexto da época em que a Ordem nasceu.

Nos séculos XII e XIII a sociedade encontrava-se num estado de transformação e a Igreja estava marcada por uma verdadeira crise moral e estrutural. A resposta aos desafios da época foi a de procurar novos caminhos para uma vida cristã mais autêntica, que fizesse referência à comunidade primitiva de Jerusalém. Tais respostas exprimiam-se em valores que são verdadeiras contestações proféticas contra a situação da Igreja e da sociedade: “É uma contestação que se coloca à procura de novos caminhos de vida cristã; caminhos feitos de acolhimento da Palavra do Evangelho, nos quais se insiste na austeridade e na simplicidade, na pobreza e na negação de si mesmo, na humanidade e seguimento de Cristo”.

De entre estas respostas encontramos o nascimento e o desenvolvimento das ordens mendicantes que queriam realizar a fraternidade apostólica, o eremitismo, os movimentos de penitência e, finalmente, as peregrinações a Roma, Santiago de Compostela e à Terra Santa.

Seguramente o primeiro grupo do eremitério do Monte Carmelo era formado por penitentes, eremitas e peregrinos que se puseram a caminho para a “peregrinatio hierosolymitana”. Na verdade, a Regra que em seguida foi pedida ao Patriarca de Jerusalém, Alberto, expressaria que “os valores vivos desta comunidade são modelados a partir da inspiração e exemplaridade da comunidade de Jerusalém que tende para a plenitude escatológica da Nova Jerusalém”.

A Regra do Carmelo como modelo de fraternidade

A Regra do Carmelo já no Prólogo indica ao mesmo tempo o caminho e a meta. É o seguimento de Jesus Cristo - “in obsequio Jesu Christi vivere” (2Cor 10, 5). Não é só aqui que se pode ver a preferência de Santo Alberto em dizer coisas importantes em poucas palavras. O centro é Cristo e a relação com ele. No seu seguimento, no seu obséquio, o cristão deve viver e “servi-lo fielmente com coração puro e boa consciência” (Regra, nº 2; cf. 1Tim 1, 5). Para os eremitas do Monte Carmelo “vivere in obsequio Jesu Christi” significava a relação pessoal com o senhor do lugar, o Rei Jesus Cristo, relação fundada não só no propósito religioso, mas tornada evidente também através do lugar em que ele viveu, da sua paixão, morte e ressurreição. Estar ao seu serviço significa estar desarmado (daí o convite para revestir-se das armas espirituais, nnº 18-19) como ele na pobreza, na abstinência, na solidão e na oração para servir o seu reino de justiça e de paz. O projecto da Regra oferece um modo de intensificação da relação com Cristo, para colocar-se num processo de transformação que tem o próprio Cristo como centro que virá no fim dos tempos. O princípio fundamental deste processo de transformação é Cristo, a sua Palavra e a sua lei: “Permaneça cada um na sua cela ou nas suas vizinhanças, meditando dia e noite na lei do Senhor e vigiando em oração, ao menos que não esteja justamente ocupado em outras tarefas” (nº 10) e celebra-se diariamente esta relação com ele na recitação de salmos e na Eucaristia (nnº 11 e 14), a fim de que a Palavra de Deus habite abundantemente no coração e na boca e se viva no silêncio e na solidão (nnº 10, 18-19, 21). Segundo a Regra, neste caminho a virtude da fidelidade é um elemento muito importante: “servi-Lo fielmente com coração puro e com boa consciência” (nº 2); “aqueles que querem viver piedosamente em Cristo” (nº 18); “tudo o que fizerdes, fazei-o no nome do Senhor” (nº 19); “ponde em prática aquilo que o Senhor diz no Evangelho” (nº 22).

Este cristocentrismo da Regra exprime-se na vida fraterna: na celebração diária da Eucaristia (nº 14) e na comunhão de bens (nnº 7 e 12). É acrescentado um outro elemento importante para a vida da comunidade do Carmelo: o capítulo da comunidade para fazer a revisão da vida comunitária e para a recíproca correcção fraterna através do diálogo (nº 15).

Para o itinerário de crescimento apresentado na Regra também faz parte o assumir a austeridade da vida vivida na fé, na esperança e na caridade, o trabalho manual, o silêncio e a mortificação (nnº 16, 17, 20).

É claro que este princípio fundamental da Regra tem consequências na estrutura daqueles que querem “vivere in obsequio Jesu Christi”. Desta forma, Santo Alberto combina de um modo único elementos da vida eremítica, que conduzem à transformação pessoal, com valores comunitários de uma experiência apostólica (nnº 4-17) como estava a desenvolver-se nos movimentos mendicantes da época. A realização pessoal com Cristo deve exprimir-se na vida diária vivida em conjunto com os irmãos. Um elemento típico da estrutura interna da fraternidade dos mendicantes é a igualdade. É importante “que desaparece, em primeiro lugar, a oposição tradicional entre a ordo monachorum e a ordo conversorum, característica do monaquismo do século XII. Na fraternidade conventual dos medicantes todos são irmãos do mesmo modo”. E assim também na Regra do Carmelo não se encontra nenhuma distinção entre clérigos e não clérigos, todos são chamados fratres, irmãos. Nem sequer se pode afirmar com segurança que o prior fosse clérigo. Todos tomam parte no trabalho manual. A única diferença mencionada pela Regra consiste nos que sabem ler dos que não sabem.

Na Regra não existe a relação pai-filho que se exprime no papel do abade, mas a de irmão-irmão. Não existe uma “relação de obediência entre pai e filho, mas uma atitude de fidelidade recíproca no contexto e em favor de um objectivo comum”. O prior é eleito pelos irmãos e deve orientar a comunidade em espírito de serviço. Portanto, os assuntos importantes da comunidade são resolvidas através do discernimento comum e do diálogo (nnº 4, 5, 6, 15).

Em conclusão, apresentamos uma boa e breve síntese do conteúdo espiritual da Regra: “O projecto espiritual da Regra conduz à comunhão com Deus e com os irmãos e é proposto a pessoas que vivem em comunidade e que procuram a inspiração e a exemplaridade na primitiva comunidade de Jerusalém, com o propósito de alcançar a plenitude escatológica da nova Jerusalém”.

A Regra do Carmelo: um projecto orientado a partir do modelo jerusalamitano

Na interpretação que faz da Regra, Bruno Secondin vê o núcleo central e intencional na ideia de Jerusalém. Segundo esta interpretação “os “'eremitas do Carmelo', através de uma hermenêutica criativa, souberam actualizar o tempo das origens, a Jerusalém da nova aliança de Ezequiel e daquela que nasceu da Páscoa e do Pentecostes, e atribuir o valor de um projecto válido para o presente: e isto através de uma concreta prática comunitária que se articula em estrutura, instituição,  experiências vitais orientadas a partir modelo jerusalamitano”.

Se se põe em relação os nnº 10-15 da Regra com a vida da primeira comunidade de Jerusalém como é descrita em Act 2, 42-46; 4, 32-36 descobre-se um certo paralelismo que indica a intenção dos primeiros carmelitas em basear a própria vida no modelo jerusalamitano: a escuta fiel da Palavra (nº 10; Act 2, 42), a oração (nº 11; Act 2, 42.46), a comunhão de bens (nnº 12-13; Act 2, 44-45; 4, 32-35), a Eucaristia diária (nº 14; Act 2, 42.46) e a união fraterna (nº 15; Act 2, 42; 44.46; 4, 32).

Na tradição, durante muito tempo, o ponto nº 10 foi o elemento central. Através da interpretação que faz Secondin os nnº 10-15 são apresentados como o núcleo central da Regra. A localização central da capela, a escuta individual e comunitária da Palavra e a reconciliação encontram o seu ponto culminante na Eucaristia como acontecimento central e pascal. Esta relação com Cristo, expressa nos valores da Regra, conduz a pessoa e a comunidade à maturidade em sentido evangélico. “A Regra não permite absolutamente que o indivíduo 'frater' viva de maneira individualista. A solidão, a lectio pessoal, o silêncio, o ter a 'própria cela' não têm sentido senão num caminho em comum como irmãos”.

A fraternidade carmelita segundo as Constituições e a RIVC

Segundo as nossas Constituições, a fraternidade é um elemento fundamental do nosso carisma (nº 13) e está fundada na Regra. “A atitude contemplativa para com o mundo em torno de nós, que nos faz descobrir Deus presente nas nossas experiências quotidianas, leva-nos a encontrá-Lo especialmente nos nossos irmãos” (Const., 19). As Constituições referem-se à presença de Act 2, 42-47 e 4, 32-35 nos números 10-15 da Regra quando afirma: “A nossa Regra quer que sejamos acima de tudo 'fratres' e recorda-nos como a natureza das referências e das relações interpessoais, que caracterizam a vida da comunidade do Carmelo, se desenvolveu no exemplo inspirador daquela primitiva comunidade de Jerusalém” (Const., 19). Em seguida, realçam os valores humanos que são importantes para a vida fraterna: “Ser 'fratres' significa para nós crescer na comunhão e na unidade, na superação das distinções e privilégios, na participação e corresponsabilidade, na partilha dos bens, de um projecto de vida e dos carismas pessoais; significa, também, amadurecer atitudes de atenção ao bem-estar espiritual e psicológico das pessoas, percorrendo os caminhos do diálogo e da reconciliação” (Const., 19). A fraternidade carmelita encontra sobretudo “força na Palavra, na Eucaristia e na oração” (Const., 20). Citando Act 4, 32 reafirmam: “Os 'fratres', todos os dias, quanto possível, são chamados da solidão ou do trabalho apostólico à Eucaristia, fonte e cume da sua vida, a fim de que, em torno da mesa do Senhor, sejam 'um só coração e uma só alma', vivendo a verdadeira comunhão fraterna na gratuidade e no serviço mútuo, na fidelidade ao projecto comum e na reconciliação animada pela caridade de Cristo” (Const., 20). Antes de enumerar alguns exemplos práticos, as Constituições afirmam: “A fraternidade, segundo o exemplo da comunidade de Jerusalém, é uma encarnação do amor gratuito de Deus e interiorizado através de um processo permanente de esvaziamento do egocentrismo – também possível em comum – para uma centralização autêntica em Deus. Assim, podemos manifestar a natureza carismática e profética da vida consagrada do Carmelo e podemos inserir harmoniosamente nela o uso dos carismas pessoais de cada um ao serviço da Igreja e do mundo” (Const., 30).

A nossa RIVC (Documento acerca da formação na Ordem do Carmo) dá um passo adiante: “A fraternidade é a pedra de toque da autenticidade da transformação que se vai realizando. Consideramo-nos irmãos a caminho do único Pai, partilhando os dons do Espírito e apoiando-nos mutuamente nas dificuldades do caminho” (RIVC, 30). Com base na Regra e nos documentos recentes da Igreja relativamente à vida fraterna, a RIVC em seguida descreve o caminho para a fraternidade e o esforço que é preciso fazer para o percorrer (RIVC, 35). Quando a fraternidade é vivida, ela torna-se um sinal profético (RIVC, 36). Finalmente, o nº 37 mostra, sempre no contexto da formação, os caminhos que conduzem à fraternidade: “Para promover uma vida autenticamente fraterna temos que nos acostumar ao acolhimento e à atenção para com os irmãos, ao diálogo sincero e aberto, ao interesse pela sua vida e a sua pessoa, à ajuda recíproca no caminho espiritual, à colaboração diligente. A presença, nas comunidades, de pessoas de idades diferentes constitui um importante enriquecimento recíproco. A presença de frades idosos e doentes, por um lado, pode ser uma pedra de toque válida para a sinceridade das motivações dos jovens, aos quais transmitem a sua riqueza de vida. Os jovens, por seu lado, estimulam nos mais adultos o impulso necessário para a actualização e alimentam a esperança do futuro.

O amor pela vida comum, a participação activa e criativa nos momentos de oração, nas reuniões, no refeitório e no recreio, contribuem para criar uma sensibilidade crescente para com a comunidade”.

(…) Termino com uma citação das Constituições: “Somos, portanto, chamados a renovar-nos como irmãos em diálogo entre nós, abertos aos sinais dos tempos e, assim, abertos ao povo, acolhendo quantos são objecto do nosso ministério, especialmente os jovens e os pobres, e abertos a desenvolver novas formas de comunicação e novos ministérios, que sejam incisivos para a Igreja e para a sociedade, impelindo todos à conversão. A expressão e a prova da nossa fraternidade é, pois, a vida comunitária, a ser vivida no espírito de Elias e a orientar-se sob a tutela da Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa Irmã” (Const., 30).

Christian Körner, O. Carm.

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