O exercício da autoridade como aparece nos evangelhos

O EXERCÍCIO DA AUTORIDADE COMO APARECE NOS EVANGELHOS

A dimensão profética da autoridade de Jesus: rectificar o rumo da comunidade

Este novo modo de conviver surge numa sociedade, que pensava exactamente o contrário. Por isso, a iniciativa de Jesus provoca reacções fortes: pró e contra. Pró, por parte do povo que gostava de ouvir Jesus, pois ele lhe anunciava uma Boa Notícia. Contra, por parte das autoridades religiosas que perguntavam a Jesus: “Com que autoridade você faz estas coisas?” (Mc 11,28; Jo 2,18). Na pergunta transparece uma concepção de autoridade que pensava ser o dono da situação, ao qual os outros deveriam pedir licença. Pela sua maneira de exercer o poder, as autoridades religiosas da época controlavam a vida do povo e bloqueavam a entrada do Reino (Mt 23,13). Elas impunham uma infinidade de normas e leis (Mt 11,28), que impediam ao povo de perceber a chegada do Reino (Mc 1,15) e de saborear a sua presença no meio dele (Lc 17,20-21).

Jesus reconhece a autoridade dos escribas e fariseus, mas denuncia a falta de coerência: “Fazei o que dizem, mas não o que eles fazem” (Mt 23,2). Quando a autoridade perde de vista o objectivo para o qual foi dada e se torna finalidade em si mesma, ela se perde, torna-se opressora e desumaniza a vida.

Jesus não teve medo de criticar o abuso da autoridade. Por isso, foi perseguido. Mas diante das ameaças tanto dos judeus como dos romanos, ele não se intimidava. Mantinha uma atitude de grande liberdade (Lc 13,32;23,9; Jo 19,11;18, 23). Eis algumas críticas de Jesus às autoridades:

  • Desautorizou o ensino dos escribas sobre a vinda de Elias (Mc 9,11-13) e sobre a descendência davídica do messias (Mc 12,35-37). Tornou desnecessária a legislação existente sobre a pureza legal, defendida sobretudo pelos fariseus, e anunciava uma nova maneira de se conseguir a pureza (Mc 7,1-23). Alargou as fronteiras do povo de Deus, pois na sua comunidade acolhia publicanos, pecadores, leprosos, possessos, doentes e prostitutas.
  • Criticou a inversão da observância do sábado, e colocou-o, novamente, a serviço da vida (Mc 2,27). Chegou a sugerir que proibir a cura de uma pessoa em dia de sábado era o mesmo que matar uma pessoa (Mc 3,4). Criticou e relativizou o Templo, expulsando os vendedores (Mc 11,15-19) e dizendo que Deus podia ser adorado em qualquer lugar (Jo 4,20-24).
  • Não teve medo de denunciar a hipocrisia de alguns líderes religiosos: sacerdotes, escribas e fariseus (Mt 23,1-36; Lc 11,37-52; 12,1; Mc 11,15-18). Criticou a ganância deles e a vontade que tinham de aparecer em público e de ocupar os primeiros lugares (Mc 12,38-40). Condenou a pretensão dos ricos (Lc 6,24; 12,13-21; Mt 6,24; Mc 10,25). Não acreditava muito na sua conversão (Lc 16,29-31), embora admitisse que fosse possível pelo poder de Deus (Mt 19,26).

Jesus não só criticou com palavras a maneira como as autoridades exerciam o poder e promoviam a vida comunitária. A própria comunidade que nascia ao seu redor era uma denúncia viva, uma alternativa profética sob vários aspectos:

1. As pessoas que compunham a comunidade eram de vários níveis: publicanos, pescadores, agricultores, artesãos, zelotes. A religião oficial, a cultura, a situação económica e política causavam conflitos entre estes grupos sociais. Jesus os chama para formar uma comunidade. Este era o grande desafio! Era o mesmo que remar contra a corrente ou andar na contra-mão, tanto da sociedade como da religião! É até hoje o grande desafio dos cristãos! A comunidade deve ser um sinal do Reino, onde é possível unir os contrários em fraternidade sob condição de ambos fazerem a conversão em direcção a Deus. É a autoridade de Jesus que consegue esta mudança, não como imposição, mas como compromisso livremente aceito.

2. Os valores que orientavam a comunidade de Jesus eram o contrário dos valores que orientavam a religião oficial do Templo e a política tanto de Herodes como do Império Romano. Na comunidade de Jesus, a posse dos bens era comunitária; eles viviam da partilha, exerciam o poder como serviço, e não se importavam com aquelas normas de pureza que eram contrárias à vida. O povo se reconhecia neles. Assim, dentro da prática de Jesus estava uma semente subversiva, capaz de, a longo prazo, desestabilizar e derrubar os valores ou contra-valores que sustentavam o sistema, mantido pela política do governo de Herodes, e, assim, provar que um outro mundo é possível. Geravam esperança.

3. O comportamento era de revisão permanente. Não é pelo fato de uma pessoa andar com Jesus e de viver na comunidade que ela já é santa e renovada. No meio dos discípulos, cada vez de novo, a mentalidade antiga levantava a cabeça, pois o “fermento de Herodes e dos fariseus” (Mc 8,15), isto é, a ideologia dominante, tinha raízes profundas na vida daquele povo. Jesus faz todo o possível, para que a pequena comunidade que nasce ao seu redor não se contamine com a concepção da autoridade que caracterizava tanto a religião da época como o Império romano. A conversão que ele pede vai longe e fundo. Ele quer atingir a raíz e erradicar o “fermento”. Eis alguns casos desta maneira fraterna de Jesus exercer a autoridade para corrigir os discípulos.

Mentalidade de grupo fechado

Certo dia, alguém que não era da comunidade, usava o nome de Jesus para expulsar os demónios. João viu e proibiu: “Impedimos, porque ele não anda connosco” (Mc 9,38). Em nome da comunidade João impediu uma acção boa! Ele pensava ser dono de Jesus e usou a sua autoridade para proibir que outros usassem o nome dele para realizar o bem. Queria uma comunidade fechada sobre si mesma. Era a mentalidade antiga de "Povo eleito, Povo separado!". Jesus responde: "Não impeçam!... Quem não é contra é a favor!"(Lc 9,39-40). Para Jesus, o que importa não é se a pessoa faz ou não faz parte da comunidade, mas sim se ela faz ou não o bem que a comunidade deve realizar.

Mentalidade de grupo que se considera superior aos outros

Certa vez, os samaritanos não queriam dar hospedagem a Jesus. Reacção dos discípulos: “Que um fogo do céu acabe com esse povo!”(Lc 9,54). Achavam que, pelo fato de estarem com Jesus, todos deviam acolhê-los. Pensavam ter Deus do seu lado para defendê-los. Era a mentalidade antiga de “Povo eleito, Povo privilegiado!”. Jesus os repreende: "Vocês não sabem de que espírito estão sendo animados"(Lc 9,55)

Mentalidade de competição e de prestígio 

Os discípulos brigavam entre si pelo primeiro lugar (Mc 9,33-34). Era a mentalidade de classe e de competição, que caracterizava a sociedade do Império Romano. Ela já se infiltrava na pequena comunidade que estava apenas começando! Jesus reage e manda ter a mentalidade contrária : "O primeiro seja o último"(Mc 9, 35). É o ponto em que ele mais insistiu e em que mais deu o próprio testemunho: “Não vim para ser servido, mas para servir”(Mc 10,45; Mt 20,28; Jo 13,1-16).

Mentalidade de quem marginaliza o pequeno

Os discípulos afastavam as crianças. Era a mentalidade da cultura da época em que criança não contava e devia ser disciplinada pelos adultos. Jesus os repreende: ”Deixem vir a mim as crianças!”(Mc 10,14). Ele coloca criança como professora de adulto: “Quem não receber o Reino como uma criança, não pode entrar nele”(Lc 18,17).

Mentalidade de quem segue a opinião da ideologia dominante  

Certo dia, vendo um cego, os discípulos perguntaram: "Quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?" (Jo 9,2). Como hoje, o poder da opinião pública era muito forte. Fazia todo mundo pensar de acordo com a ideologia dominante. Enquanto se pensa assim não é possível perceber todo o alcance da Boa Nova do Reino. Jesus os ajuda a ter uma visão mais crítica: “Nem ele, nem os pais dele”(Jo 9,3). A resposta de Jesus supõe uma leitura diferente da realidade.

Como no tempo de Jesus, também hoje, através de muitos canais, a mentalidade antiga renasce e reaparece na vida das nossas comunidades. Jesus ajudava os discípulos a mudar de vida e de visão e a continuar na conversão, na formação permanente. Como reagimos e usamos a autoridade para impedir que a mentalidade ateia e secularizada do actual sistema neo-liberal contamine a nossa maneira de conviver?

A dimensão sacerdotal da autoridade de Jesus: refazer a união com o Pai

Na raíz de tudo que o NT informa sobre o exercício da autoridade está a nova experiência de Deus como Pai, que Jesus nos revelou. Esta fonte estava encoberta, impedida de jorrar. A imagem que o sistema comunicava a respeito de Deus era causa de medo. Jesus reabriu o acesso à fonte, para que todos pudessem ter a mesma experiência de Deus e, por conseguinte, pudessem gerar a mesma fraternidade. Assim, através desta nova maneira de Jesus exercer a autoridade, o Deus dos pais, que parecia tão distante e severo, foi adquirindo os traços de um Pai bondoso de grande ternura e tornou-se uma Boa Notícia para o povo. A comunidade tornou-se, novamente, uma revelação de Deus como Pai.

Esta Boa Notícia que Jesus nos trouxe é fruto de uma iniciativa da inacreditável gratuidade do amor de Deus. Ele nos amou primeiro. Mas a gratuidade do amor só pôde chegar até nós graças à obediência total e radical de Jesus. A obediência é o outro lado do exercício da autoridade. A autoridade de Jesus nasce da sua obediência ao Pai. Fazer a vontade do Pai era o eixo da sua vida, o seu alimento diário (Jo 4,34). "Ao entrar no mundo ele afirmou: Eis-me aqui! Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade!" (Hb 10,5.7). Ao deixar o mundo, faz revisão e diz: "Tudo está realizado!" (Jo 19,30).

Esta obediência não foi fácil para Jesus. A comunhão entre ele e o Pai não era automática, mas sim fruto de uma luta que ele travava dentro de si para obedecer ao Pai em tudo e estar sempre unido a Ele. Jesus dizia: "Por mim mesmo nada posso fazer: eu julgo segundo o que ouço" (Jo 5,30) "O Filho por si mesmo nada pode fazer, mas só aquilo que o Pai fazer" (Jo 5,19). "Embora sendo Filho de Deus, aprendeu a obediência através de seus sofrimentos" (Hb 5,8). Teve que rezar muito para poder vencer (Hb 5,7; Lc 22,41-46). Mas venceu. Ninguém, nada, nunca, nenhuma autoridade, em momento algum, conseguiu interferir neste segredo mais profundo de Jesus. Os que tentaram fazê-lo esbarravam numa muralha impenetrável, numa liberdade impressionante. Ele foi obediente até à morte, e morte de Cruz (Fl 2,8).

Quem obedece não fala em nome próprio, mas sim em nome daquele a quem obedece. Esta fidelidade ao Pai era o poço de onde ele bebia. "Nada falo por mim mesmo, mas falo como me ensinou o Pai"(Jo 8,28). "Faço sempre o que lhe agrada" (Jo 8,29). Só faz o que vê o Pai fazer (Jo 5,19). A obediência faz com que Jesus se torne totalmente transparente, radicalmente livre. Pela obediência esvaziou-se de si e deixou que o Pai tomasse conta. A comunhão entre Jesus e o Pai que resulta da obediência, é tão perfeita que os dois se identificam. Tudo o que Jesus faz é revelação do Pai. "Quem me vê, vê o Pai!" (Jo 14,9; cf 10,30; 17,10; 12,45). O Reino de Deus era e continua sendo, antes de tudo, a face do Pai a ser revelada ao povo, sobretudo aos pobres!

É aqui nesta sua obediência que está a fonte da autoridade (exousia) de Jesus e da sua liberdade frente às autoridades (Jo 8,16; cf 5,31-32; 8,14). Ele não precisa de testemunho. “O Pai está comigo” É autoridade profética. Desobedece para poder ser obediente.

A obediência de Jesus não era disciplinar, mas sim profética. Por meio dela, rebentaram-se as amarras e rasgou-se o véu que escondia o rosto de Deus. Abriu-se para nós um novo caminho até Deus. Por causa da sua obediência a voz de Jesus era a voz do Pai. Por causa da obediência ao Pai ele desobedecia à tradição dos homens e a criticava. A obediência só tem sentido enquanto revelação do Pai! A resposta do Pai à obediência de Jesus foi a ressurreição (Hb 4,7; Fl 2,9).

Tudo que se criou como sinal, sacramento, símbolo, festa, celebração na comunidade é para que possamos ter acesso a esta mesma fonte de onde Jesus bebia. Ele mesmo indicou o caminho através da sua vida de oração pela qual mantinha o ouvido atento ao que o Pai dele queria. Oração pessoal e oração comunitária, celebração das festas e criação de novos ritos e sinais como a eucaristia, onde temos acesso ao amor que ele nos revelou nascido da sua intimidade com o Pai.

Como resumo cito uma frase de Jesus que esclarece tudo: “Já não tenho muito tempo para falar com vocês, pois o príncipe deste mundo está chegando. Ele não tem poder sobre mim, mas vem para que o mundo reconheça que eu amo o Pai, e é por isso que faço tudo o que o Pai me mandou. Levantem-se. Vamos sair daqui!” (Jo 14,30-31). Ele se levantou e foi para o Horto das Oliveiras. Tinha chegado a hora de passar deste mundo para o Pai. “Tendo amado os seus, deu-lhes a extrema prova do seu amor”(Jo 13,1).

Conclusão

No fim desta meditação vale a pena lembrar a mensagem final da nossa Regra para o irmão B. e os priores: Agora, você, irmão B., e quem quer que for indicado como Prior depois de você, tenham sempre em mente e cumpram na prática o que o Senhor diz no Evangelho: Todo aquele que entre vocês quiser tornar-se o maior, seja o seu servidor, e quem quiser ser o primeiro, seja o seu empregado. O prior recebe esta recomendação não para saber como ele deve animar os outros a viver em obséquio de Jesus Cristo, mas sim para saber como ele mesmo, enquanto prior, deve viver em obséquio de Jesus Cristo. Ele deve ser um outro Jesus servidor no meio dos irmãos. Não são, em primeiro lugar, as qualidades que definem a função do prior, mas sim a sua posição como representante de Jesus. Isto exige dos súditos um olhar de fé e de humildade (Rc 21), e exige do próprio prior um esforço maior na observância do ideal.

Na Regra Carmelita, o superior não é um abade, não é visto como alguém que, pela sua doutrina e pelas suas exposições, ensina os outros como devem viver em obséquio de Jesus Cristo. Ele é visto como alguém que, na prática, pela sua maneira de servir, é um testemunho vivo de Jesus, um reflexo de Jesus para os irmãos. Como Jesus, o prior deve ser a revelação do que Deus quer de nós. Deve ser um doutorando na meditação e na vivência da Palavra de Deus. Ele fará isto tendo sempre em mente e cumprindo na prática o que as coisas que o Senhor diz no Evangelho.

Carlos Mesters, O.Carm

O EXERCÍCIO DA AUTORIDADE COMO APARECE NOS EVANGELHOS

“O Filho do homem não veio para ser servido,  mas para servir e dar a sua vida em resgate para muitos” (Mc 10,45).

Para melhor entender o que a Bíblia diz sobre o exercício da autoridade, é preciso falar, primeiro, de algo que acontece na experiência diária de todos nós e que pode ser iluminado com a luz da Palavra de Deus.

Cada pessoa, no momento de entrar em contacto com outra pessoa, acciona algum poder, exerce alguma autoridade. Entre os dois surge uma influência mútua, proveniente de vários factores: os dons que cada pessoa tem, suas qualidades, seu jeito de falar, sua atracção, carisma, argumentações, capacidade de liderança, função, sexo, raça, cultura, etc. Cada um de nós, seja súbito, seja superior, com ou sem autoridade jurídica, pode usar este poder para fazer crescer o outro (“augere”, auctoritas) e, aí, ele exerce a sua autoridade como um serviço. Também pode usá-lo para fazer crescer o seu próprio “ego” e aí, em vez de servidora, a pessoa pode tornar-se egocêntrica e opressora. Com a “autoridade” que todos nós temos, tanto superiores como súbditos, podemos favorecer ou matar a vida comunitária, revelar ou esconder o carisma.

Ao longo da história, em toda organização humana, seja família, clã, comunidade, clube ou Ordem, este poder natural das pessoas vai se estruturando em três direcções diferentes, misturadas entre si:

Em vista da organização e da consistência do grupo

Os membros da comunidade, como que naturalmente, vão criando uma certa organização normativa e divisão de tarefas: hora de comer, de levantar, de rezar, de trabalhar, cuidar da comida, etc. Na Bíblia, este aspecto é realizado pela actividade sapiencial, atribuída, quase inteiramente, ao poder régio. O verbo malak significa ser rei, governar, organizar, aconselhar. Na sua origem, a “sabedoria” ou actividade sapiencial, trata das coisas da organização da vida do povo nos seus vários aspectos: casa, família, campo, praça, comércio, saúde, religião. Esta é a dimensão básica do exercício do poder e da autoridade, sua infra-estrutura e organização. A Regra fala disso sobretudo nos números 4 a 9.

Em vista da correcção do rumo e da fidelidade ao objectivo do grupo

Se no grupo ou na comunidade aparecem pessoas que não seguem as normas estabelecidas e colocam em perigo o seu rumo, sempre aparece alguém ou alguns que se encarregam de chamar a atenção, de corrigir os erros ou de solucionar os conflitos. Na Bíblia, este aspecto é representado pela actividade profética que corrige a caminhada, critica o que está errado e ajuda a reencontrar o caminho. A Regra fala disso nos números 10 a 23.

Em vista do aprofundamento do ideal comunitário

A comunidade que se preza procura conservar a memória colectiva para aprofundar e actualizar a sua identidade. Em vista disso faz reuniões e celebra datas, momentos e aniversários significativos e, através de ritos, sacramentos ou sinais, possibilita e intensifica o contacto dos membros com o acontecimento gerador (mito original) que deu origem ao grupo e que serve como ponto de união dos seus membros. Na Bíblia, no AT, este aspecto é representado pela actividade sacerdotal da tribo de Levi. A Regra fala disso nos números 10 a 23.

Para a promoção do bem comum da comunidade, da Ordem, da Família, é importante o equilíbrio entre estas três tendências do exercício do poder. Ao longo da história, porém, tanto da Bíblia como da Igreja e da Ordem, nem sempre soubemos conservar o equilíbrio. Muitas vezes, houve manipulação do poder. Por exemplo, os reis de Israel e de Judá reduziram o sacerdócio e a profecia ao tamanho dos interesses da monarquia, criando os profetas da corte e construindo o Templo com seu sacerdócio centralizador, o que levou ao desastre nacional do cativeiro na Babilónia. O problema já é antigo e continua muito actual.

Um outro exemplo. Aqueles entre nós, que servimos ao povo como sacerdotes, recebemos este mesmo tríplice poder ou autoridade, definida, conforme as palavras do bispo consacrante, como ministério régio, profético e sacerdotal. Aqui, as três funções comunitárias que eram exercidas por pessoas ou grupos diferentes: reis, profetas e sacerdotes. acabaram concentradas numa única pessoa. Resultado: a preferência foi dada ao sacerdócio em prejuízo da profecia e da actividade sapiencial. Aqui está uma das causas da crise actual no exercício da autoridade.

A evolução do exercício da autoridade no Antigo Testamento

Êxodo e época dos Juízes

Saindo do Egipto, o povo saiu de um jeito de conviver e de experimentar o exercício da autoridade e iniciou um novo jeito de conviver e de exercer a autoridade. No Egipto, o faraó, legitimado pela religião que o considerava “filho de Deus”, era dono de tudo. A sua maneira de exercer o poder excluía a participação e impedia a comunhão. A nova experiência de Deus, adquirida nos quarenta anos do deserto, levou o povo a descentralizar o poder e a criar relações igualitárias entre os membros das comunidades. Adoptaram o sistema tribal, afirmaram o princípio de subsidiariedade com “chefes de mil, de cem, de cinquenta e de dez” (Ex 18,13-17; Núm 11,16-17). O exercício da autoridade revela a nova experiência de Deus, está ao serviço da nova organização social e se impões através do testemunho que gera adesão e participação (Jos 24,14-18).

O tempo do Êxodo e dos Juízes ficou na memória do povo como um tempo de ouro que servia como quadro de referências para as épocas posteriores. O tema do Êxodo é o fio de ouro que percorre a Bíblia de ponta a ponta, tanto no AT como no NT. Foi o período em que, apesar das dificuldades, conseguiram manter um equilíbrio entre aquelas três funções do poder, régia, profética e sacerdotal. Conseguiram abortar duas tentativas em que a função régia tentava controlar as outras duas: Jerubaal ou Gedeão e Abimeleque. A experiência do Êxodo serviu também de critério aos profetas para denunciar o exercício arbitrário da autoridade pelos reis de Israel de Judá e passou a ser invocada para legitimar e justificar as legislações posteriores.

Época dos Reis e dos profetas

Factores externos da conjuntura internacional e factores internos do enfraquecimento do sistema tribal, favoreceram a mudança na maneira de exercer a autoridade. e fizeram com que a função régia conseguisse o controle das outras duas funções. O rei é chamado “filho de Deus”. Ele controla o sacerdócio construindo o Templo e cria os profetas da corte que chegaram a 400 no tempo de Acabe. Os reis introduzem um novo tipo de exercer a autoridade que se baseia no poder e na força e que exige submissão, obediência total e disciplina. Os reis manipulam tudo em seu favor, inclusive a própria fé em Deus que, assim, se torna idolatria. Criam os profetas da corte e recebem a adesão dos sacerdotes. A partir do profeta Elias, uma parte dos profetas entra na oposição e, em nome da sua fé em Javé, denuncia a manipulação da religião. Na época do rei Acabe, Javé já não passa de um ídolo Baal. O que vai levar ao fracasso total no cativeiro.

Época pós-exílica cativeiro da lei

Nos séculos depois do cativeiro da Babilónia, o povo hebreu já não tem mais poder político. A autoridade passa para os escribas e sacerdotes. As duas funções sapiencial e sacerdotal se unem e exercem o poder sobre as consciências. O profetismo se dilui no movimento popular clandestino dos pobres e no movimento apocalíptico. Um certo fundamentalismo, moralismo e ritualismo fizeram com que, aos poucos, o rosto de Deus se transformasse num retrato rígido e severo, pendurado, indevidamente, nas paredes da Sagrada Escritura. Isto foi criando medo e distância entre Deus e o seu povo. Assim, nos últimos séculos antes de Cristo, o nome JHWH já não podia ser pronunciado. Diziam Adonai, o que significa Senhor, traduzido por Kyrios. A religião estruturada ao redor da observância das leis, o culto centrado no templo de Jerusalém e o fechamento em torno da raça criaram um novo cativeiro que abafava a experiência mística, e impediam o contacto com o Deus vivo. Já não bebiam directo da fonte, mas sim a água engarrafada pelos doutores da lei. Até hoje, bebemos muita água engarrafada.

A esperança com que o povo aguarda a chegada do Messias

A última frase do AT na Bíblia cristã tem a ver connosco, pois fala do profeta Elias e diz que o povo esperava a vinda do Profeta Elias para que viesse reconduzir o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para o pais (Mal 3,23-24). Esperavam que o profeta Elias exercesse a sua autoridade profética para reconstruir a vida comunitária, a fim de que ela fosse novamente expressão da aliança e revelação da face de Deus. Esta esperança do povo ajuda a entender como Jesus exercia a autoridade.

O exercício da autoridade na vida e no ensinamento de Jesus

Na raíz de tudo que o NT informa sobre o exercício da autoridade está a nova experiência de Deus como Pai, que Jesus nos revelou. Esta experiência, como agora veremos, tem uma influência radical (raíz) sobre a vida comunitária e, por conseguinte, sobre a maneira de exercer a autoridade.

Jesus exerce a sua autoridade ao serviço da manifestação do Reino de Deus

A primeira coisa que Jesus faz é “anunciar a Boa Nova de Deus” (Mc 1,14). Deus, a chegada do Reino de Deus, é a grande Boa Notícia para a vida humana! A experiência que Jesus tem de Deus dá a ele um olhar novo para ler a realidade de maneira diferente e capacita-o para anunciar: “O tempo já se cumpriu! O Reino de Deus chegou!” (Mc 1,15). “O Reino de Deus está no meio de vocês!” (Lc 17,21). O povo percebeu a novidade, ficou admirado e exclamou: “Ele fala com autoridade (exousia), diferente dos doutores da lei” (Mc 1,22.27).

Aqui transparece um novo conceito de autoridade. Os doutores da lei viviam citando autoridades, mas, para o povo, eles falavam sem autoridade (exousia). Jesus não citava nenhuma autoridade e o povo dizia: “Ensinamento novo! Dado com autoridade!” (Mc 1,27). Jesus não fala sobre Deus, mas revela Deus pelo seu jeito de ser e de falar. Ele anuncia o que vive, e vive o que anuncia. A autoridade dos escribas vem de fora e se impõe ao povo. Ela vence o povo, mas não o convence. A autoridade de Jesus vem de dentro e tem a força do testemunho. Ela não vence, mas convence.

O primeiro gesto com que Jesus concretiza o anúncio da Boa Nova de Deus é chamar discípulos para seguí-lo e formar comunidade com ele (Mc 1,16-20; 3,14). A expressão “seguir alguém” indicava o relacionamento entre os discípulos e o mestre. O relacionamento mestre-discípulo é diferente do relacionamento professor-aluno. Alunos assistem às aulas do professor sobre uma determinada matéria. A autoridade do professor reside no conhecimento acumulado para ser transmitido aos alunos. Discípulos “seguem” o mestre e convivem com ele. Fazem comunidade com ele. A autoridade do mestre reside na sua maturidade de conviver e no seu testemunho de vida, reconhecido e aceito pelos discípulos. Foi nesta “convivência” de três anos que Jesus exercia a sua autoridade e formava os discípulos e as discípulas.

A autoridade que Jesus exerce junto aos discípulos não é, em primeiro lugar, a transmissão de normas a serem observadas, mas sim a comunicação da nova experiência de Deus e da vida que dele irradia (exousia). Ela leva os discípulos a terem outros olhos, outras atitudes. Faz com que, imitando Jesus, coloquem os pés do lado dos excluídos. Produz aos poucos a “conversão” como consequência da aceitação da Boa Nova de Deus e do Reino (Mc 1,15). É uma autoridade que gera liberdade e nova visão. Não é disciplinar. É profética!

A autoridade de Jesus, sua atitude liberta e profundamente humana, faz com que os discípulos começam a discernir o que serve para a vida e o que não serve. Eles criam coragem para transgredir normas que pouco ou nada tem a ver com a vida: arrancam espigas em dia de sábado (Mc 2,23-24), entram em casa de pecadores (Mc 2,15), comem sem lavar as mãos (Mc 7,2) e já não insistem em fazer jejum (Mc 2,18). Distanciam-se das posições anteriores. A conversão vai acontecendo. Por isso, são envolvidos nas tensões e brigas de Jesus com as autoridades e são criticados e condenados pelos fariseus (Mc 2,16.18.24). Mas Jesus os defende (Mc 2,19.25-27; 7,6-13). É uma autoridade que comunica discernimento crítico e coragem para assumir riscos.

A dimensão sapiencial da autoridade de Jesus: reconstruir a vida comunitária

Hoje, diante do fenómeno da massificação e da urbanização que destrói o tecido comunitário tradicional, surgem varias tentativas para reconstruir a vida comunitária. Assim também, no tempo de Jesus, havia vários movimentos que procuravam realizar a esperança do povo e criar uma nova maneira de viver e conviver: essénios, fariseus e, mais tarde, os zelotes. Como Jesus, eles formavam comunidades de discípulos e tinham seus missionários (Mt 23,15). Porém, a eles faltava a novidade da Boa Notícia de Deus. Eles usavam a sua autoridade para manter as normas da pureza legal. Por exemplo, quando iam em missão, levavam sacola e dinheiro para cuidar da sua própria comida, pois achavam que não podiam confiar na comida do povo que nem sempre era “pura”. Insistiam na observância das leis e as explicavam ao povo a partir de uma visão antiquada de Deus. Assim, o exercício da autoridade, em vez de favorecer, dificultava a fraternidade e não contribuía para a reconstrução da vida comunitária. Era uma autoridade conservadora. Não renovava a vida comunitária. Não reconduzia o coração dos filhos para os pais.

Na comunidade que se forma ao redor de Jesus, o exercício da autoridade tem como objectivo a promoção da fraternidade, para que ela seja uma amostra ou uma revelação progressiva da nova experiência de Deus e da vida. A comunidade é a Boa Notícia de Deus para o povo. A sua reconstrução era o que o povo esperava da acção do profeta Elias para os tempos messiânicos: reconduzir o coração dos pais para os filhos, e o coração dos filhos para os pais (Ml 3,23).

Os discípulos e as discípulas são envolvidos na missão e recebem de Jesus a ordem ou a autoridade para reconstruir a vida comunitária em novas bases. Eles devem insistir em quatro pontos que, desde sempre, foram as quatro colunas da vida comunitária, mas que estavam quebradas no tempo de Jesus:

  1. Quando vão em missão, não podem levar nada (Mc 6,8; Lc 10,4). Se não podem levar nada, a não ser a Paz, é porque devem confiar na hospitalidade do povo. O êxito da missão não depende só do missionário e do anúncio que fará. Depende também da hospitalidade do povo que vai recebê-lo. É uma autoridade que não se impõe, mas se faz fraca e provoca a participação das pessoas para a prática do bem.
  2. Não podem ir de casa em casa, mas devem conviver de maneira estável (Mc 6,10; Lc 10,7). Devem participar normalmente da vida e do trabalho do povo, como sendo um deles, e o povo os acolherá e partilhará com eles casa e comida. É uma autoridade que provoca a partilha dos bens, o contrário do império romano, onde reinava o acúmulo de bens.
  3. Devem comer o que o povo lhes oferece (Lc 10,8). Isto é, devem aceitar a comunhão de mesa. No contacto com o povo não podem ter medo de perder a pureza, imposta pelas leis. A convivência com o povo representa um valor superior que os obriga a transgredir as leis de pureza da época. É uma autoridade que se faz irmã e amiga.
  4. Como tarefa especial devem cuidar dos doentes, curar os leprosos e expulsar os demónios (Lc 10,9; Mt 10,8). Isto é, devem acolher para dentro do clã os que dele foram excluídos por causa da má interpretação da Lei de Deus. A reintegração dos excluídos faz parte da missão que Jesus dá aos discípulos. É uma autoridade que se faz justiça. Hoje tanta gente é excluída em nome de Deus: divorciados, aidéticos, ....

Caso estas quatro exigências, hospitalidade, partilha, comunhão de mesa e reintegração dos excluídos, forem preenchidas, os discípulos poderão gritar aos quatro ventos: “O Reino chegou!” (Lc 10,9; Mt 10,7). Pois a Boa Nova do Reino não é uma doutrina a ser transmitida, nem um catecismo a ser decorado, nem uma disciplina a ser imposta, nem uma cultura a ser exportada, nem uma ideia nova a ser ensinada. O Reino de Deus acontece quando as pessoas, por causa do anúncio de Jesus ou a partir de Jesus, começam a conviver em comunidade como irmãos e irmãs, revelando assim que Deus é Pai de todos nós. Com outras palavras, a autoridade dada aos discípulos consiste em reconstruir a comunidade local, o clã, a “casa”, para que possa ser novamente uma expressão do Reino, do amor de Deus como Pai que faz de todos irmãos e irmãs.

Toda nova experiência de Deus, quando verdadeira, traz mudanças profundas na convivência humana. Assim, na medida em que cresce e se recria a pequena comunidade ao redor de Jesus, aparecem nela mudanças profundas que devem orientar o exercício da autoridade e caracterizar toda e qualquer comunidade que pretende ser cristã.

  1. Todos irmãos.  Ninguém deve aceitar o título de mestre, nem de pai, nem de guia, pois “um só é o mestre de vocês e todos vocês são irmãos” (Mt 23,8-10). A base da comunidade não é o poder, nem o saber, nem a hierarquia ou a autoridade recebida dos outros, mas sim a igualdade de todos como irmãos. É a fraternidade. 
  2. Partilha dos bens.  Ninguém tinha nada de próprio (Mc 10,28). Jesus não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8,20). Mas havia uma caixa comum que era partilhada também com os pobres (Jo 13,29).
  3. Poder é serviço. “Os reis das nações as dominam e os que as tiranizam são chamados benfeitores. Entre vocês não seja assim” (Lc 22,25-26). “Quem quiser ser o primeiro seja o último!” (Mc 10,44). Jesus deu o exemplo (Jo 13,15). “Não veio para ser servido, mas para servir” (Mt 20,28).
  4. Poder de perdoar e reconciliar. Este poder foi dado a Pedro (Mt 16,19), aos apóstolos (Jo 20,23) e às comunidades (Mt 18,18). O perdão de Deus passa pela comunidade, que deve ser lugar de perdão e de reconciliação, e não de condenação mútua. Hoje mais importante do que nunca.
  5. Igualdade homem e mulher. Jesus muda o relacionamento homem-mulher, pois tira o privilégio do homem frente à mulher (Mt 19,7-12). À Madalena deu a ordem, a autoridade, de anunciar a Boa Nova aos apóstolos (Mc 16,9-10; Jo 20,17).

Assim, aos poucos, comunidade que se forma ao redor de Jesus torna-se a revelação do rosto de Deus transformado em Boa Nova para o povo. É disto que nossas comunidades carmelitanas deveriam ser testemunhas e é em vista disto que devemos exercer a autoridade.

Continua

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