Uma revisão da ideia de Leigo

UMA REVISÃO DA IDEIA DE LEIGO

Um refrescamento da ideia - o que é ser leigo? - parece ser um bom tema para apresentar neste Congresso da Ordem Terceira. Talvez que, no meio de tantos conceitos, tantas ideias, tantas opiniões, tantas mudanças de espírito, sejamos compelidos a esquecer o que significa a nossa realidade, como leigos, membros da Igreja, mas leigos.

A palavra leigo tem sido polémica e contraditória. Durante muitos séculos, leigo era uma ideia considerada como algo de oposto aos carismas sacerdotais da Igreja. Mesmo nos nossos dias, podemos, cada um de nós, ser leigo, mas se dissermos que somos laicistas corremos o risco de suspeita... A revalidação da clássica ideia de leigo - um membro da Igreja - simplesmente sem ordens sacras, sem profissão congreganista, percorreu um longo caminho, tendo recebido muita energia da doutrina emanada do II Concílio do Vaticano.

Antes de mais é necessário distinguir entre leigo e secular. A distinção é factível por critério de extensão: todos os leigos são seculares, mas nem todos os seculares são leigos. Na verdade, seculares são também os padres não ligados à vida religiosa consagrada, sobretudo os padres diocesanos, que não são leigos. A distinção é relevante, porque o Carmelo Secular não é estritamente laical, porque tem lugar também para sacerdotes seculares e para religiosas, mas seculares. Por isso, podemos assumir que a expressão Carmelo Secular é mais correcta do que a expressão Carmelo laical, embora a maioria das Ordens Terceiras e das Confrarias, seja de facto constituída por leigos.

Olhemos então para a maioria.

Esta minha comunicação é mais pessoal do que institucional. Apresentarei um testemunho baseado nas minhas reflexões pessoais sobre a realidade, e sobre o pensamento eclesial. A realidade é algo de imediato, de experiencial, objectivo/subjectivo. A doutrina não tanto, porque a doutrina é um paradigma. Muitas vezes, em muitos lugares, nas mais diversas condições, a realidade é ultrapassada pela doutrina. Por isso, há lugar para indagar se Jesus Cristo empurra o homem para a doutrina, ou para viver a realidade.

Os teóricos podem saber muito de teorias, mas o leigo não é uma teoria. Ele é uma pessoa incarnada. Está vivo, não se limita a palavras. O seu discurso é a sua vida, a sua maneira de viver a sua vida,  junto do povo.

A primeira e principal responsabilidade dos leigos é o delineamento do mundo, à luz do Evangelho. A doutrina da Carta Preparatória do Sínodo dos Bispos (1986) ainda é actual: “A primeira e imediata tarefa dos leigos não é, nem a instituição, nem o desenvolvimento da comunidade eclesial - a qual incumbe mais aos sacerdotes - mas a de pôr em acção todas as capacidades cristãs e forças evangélicas, com vista ao aperfeiçoamento das realidades do mundo”.

De facto, o encargo imediato e principal dos leigos é o desenvolvimento da ordem temporal. Este juízo não implica qualquer tipo de classismo, nem se diz que a Igreja esteja dividida em duas classes, os padres/religiosos por um lado, o povo (leigos) por outro. Ambos são as faces da mesma moeda, a face existe porque existe reverso e reciprocamente. Não há nenhuma objecção quanto à divisão das responsabilidades, desde que saibamos as tarefas próprias dos padres em vista dos leigos, o que tem de ser feito pelos leigos para a Igreja, e o que tem de ser feito por todos, em conjunto, em favor da Humanidade e, sem dúvida, em favor do Mundo, que envolve muitos mais valores do que a Humanidade, na medida em que o Mundo contém toda a criação divina, e esta não pode ser escamoteada a favor de um egoísmo humanista. O homem é apenas o irmão mais novo de outras criaturas, criadas nos dias que antecederam a sua criação, mas o Pai é o mesmo.

A animação cristã da ordem temporal obriga os leigos. Este trabalho deve ser feito pelos leigos, por isso os leigos têm o direito de tomar decisões, e os seus movimentos e organismos devem ser algo da sua criatividade, de modo que em vez de organizações para leigos, se prefiram as organizações criadas por leigos. E por eles dirigidas, em harmonia com os Pastores.

Os membros que têm a responsabilidade da instituição e do progresso da comunidade eclesial deveriam envolver-se exclusivamente nesta finalidade, razão pela qual a Igreja lhes faculta um mínimo de condições para esse trabalho, sem problemas sociais e/ou económicos. Eles são profissionais da Religião.

Diferente é o estatuto do leigo. Leigo não é profissão, nem actividade. O leigo, além das responsabilidades eclesiais como membro do povo de Deus, tem necessidade de trabalhar para ganhar a sua vida e a vida dos seus. Precisa de escolher uma profissão entre muitas; está sujeito aos mecanismos económicos e sociais; ao emprego e ao desemprego; é obrigado a investir a maior parte do seu tempo a consolidar a sua economia; por vezes, muitas vezes, compelido a saber de que modo pode conciliar a sua vocação apostólica com o seu trabalho no mundo. Não podemos ficar surpreendidos quando encontramos leigos que estão confusos, ou descrentes acerca da sua real disponibilidade para se envolverem em acções específicas, além das implícitas na sua própria forma de vida, no seu grupo social, no seu país, no seu mundo.

A complexidade da laicidade reclama uma radical, forte e leal assistência, essa que os leigos esperam da hierarquia em geral e das congregações religiosas em particular. De facto, a maioria do povo de Deus é constituída por leigos. Estes são a base social da Igreja, e a Igreja não subsistirá neste Mundo sem o Povo. A Igreja Triunfante continuará a existir nos Céus, mas a Igreja militante só tem um lugar para existir: este Mundo, com este Povo.

Juntos, com a assistência do Espírito Santo, a Igreja não irá a reboque do Mundo, pelo contrário, o Mundo irá a retoque da Igreja.

Os leigos têm de ser imaginativos, devem ter imaginação, devem ser capazes de criar novas coisas, novas capacidades de estar em Igreja e no Mundo, de uma forma dinâmica e testemunhal.

É ainda tempo de memorar os ensinamentos de Santo Padre João Paulo II: “O campo da actividade evangelizadora (dos leigos) é o amplo e complexo mundo da política, da realidade social, da economia; também o campo da cultura, das ciências e das artes, da vida diplomática internacional, dos meios de comunicação; há outras realidades específicas disponíveis para a evangelização, por exemplo, o amor, a família, a educação das crianças, a orientação dos jovens, a actividade profissional, o sofrimento”. O Papa actualizou estes ensinamentos, alguns anos depois, chamando a nossa atenção para áreas em que os leigos têm uma função a desempenhar: os novos sistemas de comunicação/informação, os sectores financeiros, as organizações nacionais e internacionais, a saúde, a educação, a solidariedade (João Paulo II, Christifidelis Laici; Duc in Altum).

O leigo está aqui como leigo, como pessoa activa e consciente, ou não será de facto um leigo, não passando de uma pessoa cinzenta, igual a qualquer outra, indiferente. Na verdade, o leigo autêntico não é o que está sempre disponível para dar alguma assistência nas liturgias, nas missas dominicais, ou para vestir um hábito em eventos sociais. O leigo não é quem pensa ser uma espécie de padre sem ordens, ou que é quase um padre. Um leigo é um leigo, não há motivo para ambiguidade: o leigo é leigo. No Mundo.

O leigo é leigo por ser uma testemunha de Cristo no seu meio. No trabalho, ele tenta ser o melhor trabalhador. Será o melhor colega para os colegas. Será considerado uma pessoa competente. Será um modelo em todos os aspectos temporais. Cumprirá, em primeiro lugar, as suas obrigações e, depois, as suas devoções.

Os leigos são cordeiros no meio de lobos. Eles serão o objecto de todas as atenções. Se um leigo errar, será apontado a dedo por ser um católico de palavras, não de gestos. O leigo não estará perante os outros como beato, com um rosto piedoso e seráfico, mas com uma fisionomia normal e realista, nunca como sepulcro caiado de branco. No segredo do seu coração manterá a santidade... Estará no mundo qual modelo de vida, paradigma. Com uma diferença: sendo o melhor do mundo, confessará ser apenas um fiel cristão. Caso contrário ninguém o levará a sério. Ora, um apóstolo precisa de ser levado a sério.

Cultura, ciências, artes, paz, vida, natureza, recusa da guerra e da morte, eis onde se situam os desafios reais para as capacidades e habilitações dos leigos. Nós não podemos transferir as responsabilidades dos leigos para os padres. Os padres não devem transferir as suas próprias responsabilidades para os leigos. Talvez alguma falta de sacerdotes se deva ao facto de muitos deles estarem envolvidos em tarefas temporais, que melhor seria cometer a leigos... Todavia, padres e leigos, trabalhando ao ritmo do mesmo Pastor, conseguirão atingir o seu objectivo, como se fossem uma equipa de futebol. “Instaurare omnia in Christo”!

Chamado à procriação, o leigo não é um monge. Excepção feita a algum que prefira viver a sós, o leigo é a origem da sociedade, o coração da grande sociedade, a família: pai, mãe, primeiros responsáveis pela vida dos filhos. São os sacerdotes da primeira Igreja, a Igreja Doméstica. A Família é, em primeira e em última instância, o campo privilegiado para o exercício das capacidades dos leigos. Este ponto é tanto mais importante quanto é certo a família atravessar uma situação crítica, sendo dia a dia ofendida por leis, por Governos, por correntes heterodoxas de ideias e de costumes perversos, que visam destruir a instituição familiar. A Família é o primeiro espaço para o exercício do compromisso laical com a realidade social. Estas palavras, assinadas por João Paulo II, estão vivas. Conclusão: o futuro da humanidade, dependendo da Família, depende, sem dúvida, dos leigos.

A Família é o lugar de nascimento dos jovens, e os jovens são o futuro. Relatando o Congresso de Aylesford (1991) aos leitores portugueses da nossa revista Carmelo Lusitano, mencionei que os jovens tinham constituído uma das mais importantes questões discutidas no Congresso. Tanto quanto a minha memória registou, todos os participantes expressaram a opinião de que os jovens são uma área especial digna de metodologia. Todos os congressistas concordaram ser necessário encontrar novas e adequadas vias para os jovens, sendo preferível que eles sejam conduzidos e/ou orientados pelas Ordens já existentes. Se os jovens quiserem formar um grupo, têm diversas opções, como: a) um grupo específico nas Paróquias, b) uma confraria juvenil, afiliada, ou à Confraria local, ou uma Ordem Terceira; c) formar uma Juventude, etc. No entanto, se os jovens forem filhos de leigos carmelitas, será melhor para eles juntarem-se aos pais, e irmãos, nos sodalícios de que estes fazem parte.

Quase ao mesmo tempo do Congresso de Aylesford, o Papa João Paulo II publicou a Exortação Apostólica “Christifidelis Laici”. Os jovens são um capítulo do documento, e muitos de nós, leigos, fomos avisados para a importância da Juventude como uma área a solicitar uma acção real e urgente.

Os jovens são o futuro. Não apenas das vocações laicais, mas das vocações consagradas. Nunca esqueçamos um rapaz, nunca esqueçamos uma rapariga...

De acordo com as palavras do Santo Padre, os Jovens são as “sentinelas da madrugada”. Eles reclamam guias que os conduzam a uma radical opção de fé e de vida. Isto é muito importante, na perspectiva do Terceiro Milénio.

Nós, leigos, precisamos de ganhar os jovens para a causa. Se perdermos os jovens, perderemos o futuro. Este risco é claramente crítico com referência aos Carmelitas que somos poucos no mundo, sem grande número de pessoas disponíveis para os jovens que os conquistem para Cristo e para a nossa espiritualidade.

As Ordens Terceiras e as Confrarias não podem existir como uma espécie de seitas, ou de ordens secretas. São criaturas vivas, necessitam de respirar, ou seja, de inspirar e de expirar. Por vezes, quanto a elas, ninguém sabe da sua existência, como Ordem em movimento. Os grupos seculares precisam de se apresentar à sociedade sobretudo às novas gerações, que ignoram estas realidades.

O Mundo constitui um forte e grande desafio para os Cristãos e, logo, para os Carmelitas. Os problemas dos nossos dias são muitos mais do que antigamente. As próximas décadas do século XXI apresentarão grandes mudanças, todos os dias. Ninguém pode afirmar o que vai acontecer. Temos de estar preparados, temos de estar calçados, prontos para o caminho.

Em vista dos problemas que se esperam, o Papa avisa: “os leigos têm de estar presentes nas tarefas resultantes destes presentes desafios, nunca ficando sujeitos à tentação de reduzir as comunidades cristãs a uma espécie de agências sociais”(Duc in altum).

A perspectiva de Aylesford voltou-se para o problema da educação. Muitas outras questões vieram ao de cima, durante os dias, junto do rio Medway, mas a educação esteve em primeiro lugar. Todos concordaram em que a educação é uma necessidade comum a toda a Família, não obstante os carismas individuais e pessoais. Os grupos institucionais, Primeira Ordem, e Terceira Ordem Secular têm de seu lado a maior quota de responsabilidade na área da educação e da formação. Por este motivo, a formação de leigos como orientadores e chefes deve ser um objectivo essencial. Os leigos das Ordens Terceiras e das Confrarias devem assumir a formação, devem partilhar a educação para a vida laical. As funções do Director Espiritual devem concentrar-se na formação espiritual. Os grupos necessitam de se juntar, de efectuar encontros de estudo, de meditar, de rezar, de receber formação, sem dúvida, mas devem ter iniciativas respiratórias para fora: encontros, conferências, convívios, e outras formas de partilha.

O estudo dos problemas do mundo secular, os problemas sectoriais, podem ser objecto de estudo, para tanto se convidando especialistas, abrindo as iniciativas a toda a gente, e não apenas aos membros, ou irmãos, do sodalício. E devem valorizar certas efemérides com relevo na história do Carmelo a celebração de uma personalidade, o estudo de um acontecimento, o... digamos, a pública e notória comemoração dos 750 anos do Escapulário!

Entre as recomendações do Encontro da Família Carmelita (Nantes, 1994) achamos algumas ainda actuais:

  • cooperação das fraternidades de cada país face a objectivos comuns;
  • partilha de recursos económicos;
  • apoio material e espiritual às vocações consagradas.

Não faremos a crítica de ninguém. Pela nossa experiência em Portugal julgamos as outras. Os grupos portugueses reúnem-se uma vez por ano em Fátima. E depois? E então? Que comunicação/cooperação? Os grupos respiram, ou apenas inspiram? Ou não passamos de grupos fechados, que nos consideramos superiores aos outros? O que fazemos, para além de reuniões de piedade e de social?

A Ordem Terceira é historicamente a chave do Laicado Carmelita. “Da sua natureza secular deriva (da Ordem Terceira) a sua vocação, que é a ocupação nos problemas do mundo que deve ser ordenado conforme à vontade de Deus. A sua vida é vivida no mundo, em cada uma e em todas as actividades, profissões, e nas comuns condições da família e da sociedade. Aqui eles são chamados a dar o seu contributo para a santificação do mundo, comprometidos com o seu trabalho profissional dentro do espírito do Evangelho, seu guia. A sua responsabilidade é a de esclarecer e de organizar as actividades do mundo, de tal modo que estas sejam realizadas de acordo com Cristo, tornando-se uma oração ao Criador”.

Esta é a lição da Regra da OT, nº 13. Nem mais, nem menos. Bom, como diz ainda a Regra de Santo Alberto: “ Si quis autem supererogaverit, ipse Dominus, cum redierit, reddet ei” (Regula, cap. 18).

J. Pinharanda Gomes

 

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