Da Obediência dos Irmãos ao Prior (nº 23)

A Regra do Carmo

- Da Obediência dos Irmãos ao Prior (n.º 23) -

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23. E vocês, os demais irmãos, tratem o seu prior com deferência e humildade, pensando, mais do que nele mesmo, em Cristo que o colocou acima de vocês, e que diz aos que estão à frente das igrejas: Quem ouve a vocês, é a mim que ouve; quem des­preza a vocês, é a mim que despreza, a fim de que vocês não sejam condenados como réus por menosprezo, mas possam merecer por obediência a recom­pensa da vida eterna.

Um pouco de história: sobre a Regra vista como uma carta dirigida aos irmãos

O número final da Regra (RC 23) começa assim: Vocês, os demais irmãos,.... Esta maneira de falar lembra, novamente, que a Regra é uma carta. Não é um livro escrito para um público anónimo, mas sim uma carta carinhosa, escrita para aquela comunidade dos primeiros carmelitas que viviam no Monte Carmelo e que tinham um relacionamento de amizade com Alberto.

Do começo ao fim da Regra, esse grupo dos nossos primeiros irmãos fundadores está presente na mente de Alberto orientando-o na escolha das palavras e na formulação das frases. Toda a Regra está formulada na segunda pessoa (Você  ou Vocês), que aflora, constantemente, em dezanove dos vinte e quatro números, e que reaparece agora no final: Vocês, os demais irmãos. Todos são chamados de irmãos. Alberto os acolhe na família.

A própria Regra é um exercício de fraternidade. Faz acontecer o que pretende realizar. Ao lerem a carta de Alberto o irmão B. e os demais irmãos se sentiam acolhidos. A Regra não se apresenta como uma lei que, de fora, se impõe exigindo submissão, mas sim como um convite de irmão que, de dentro, anima e orienta. Fazia crescer neles o sentimento e a experiência de fraternidade.

A Regra faz acontecer a fraternidade também pelo fato de evocar o modelo de comunidade tal como aparece nos Atos dos Apóstolos e que era o ideal da Igreja renovada daquela época. Ao lerem a Regra, os frades reencontravam nela o ideal de vida que os animava.

Os quatro critérios básicos de uma Comunidade

Como deve ser uma comunidade para que seja sinal de vida nova? O Novo Testamento traz vários modelos. Por exemplo, o Evangelho de Ma­teus traz uma proposta no discurso da Comunidade (Mt 18,1-35) e outra no Sermão da Montanha (Mt 5 a 7). Marcos des­creve um projeto de comunidade através de uma série de episódios que revelam o obje­tivo da Boa Nova na vida do povo (Mc 1,16-45). Lucas, por sua vez, propõe um modelo ao descrever a vida dos primeiros cristãos. Este último era o modelo mais conhecido, que orientou Alberto na formulação do ideal da vida carmelitana. É um modelo sustentado por quatro colunas: “Eles perseveravam no ensinamento dos apóstolos, na comunhão, na fração do pão e nas orações (At 2,42). Vamos ver de perto cada coluna.

1ª coluna:  O ensinamento dos apóstolos: novo quadro de referências da vida comunitária

Como Jesus, os primeiros cristãos tiveram a coragem de romper com o ensi­na­mento dos escribas, que eram os doutores da época, e seguem agora o ensinamento de doze pescadores sem instrução (At 4,13). O ensinamento dos apóstolos é a nova interpretação da vida e da Bíblia, que os apóstolos transmitem a partir da expe­riência que tiveram da ressurreição.

A nova liderança dos apóstolos não veio da tradição ou da raça, nem do poder ou da força, nem de al­gum curso ou diploma, mas dos sinais realizados por eles na comuni­dade (At 2,43; 4,33; 5,12.15-16), e das "ordens" dadas por Jesus ressuscitado: a Madalena, aos doze apósto­los, aos 120 discípulos, às mulheres, à multidão no Monte das Oliveiras (Mt 28,18-20; Mc 16,15; Lc 24,44-49; Jo 20,23; 21,17). No exercício desta autoridade, porém, os animadores eram questionados pela comunidade (Gl 2,11-14; At 11,3) e deviam prestar contas (At 11,4-18).

2ª coluna:
 A comunhão: novo ideal da vida comunitária

Os primeiros cristãos colocavam tudo em co­mum a ponto de não haver mais necessitados entre eles (At 2,44-45;4,32.34-35). As­sim, cumpriam a Lei de Deus que dizia: "Entre vocês não pode haver pobre!" (Dt 15, 4). A comunhão (koinonia) indicava a atitude de quem não se considerava dono do que possuía, mas tinha a coragem de partilhar seus bens com os outros (Rm 15,26; 2 Cor 9,13). Esta Comunhão era sagrada. Não podia ser profanada. Quem dela abusava em benefício próprio morria para a comunidade. É a lição do episódio de Ananias e Safira (At 5,1-11).

O ideal da comunhão era chegar a uma partilha não só dos bens, mas também dos senti­mentos e da experiência de vida, a ponto de todos se tornarem um só coração e uma só alma (At 4,32; 1,14; 2,46); chegar a uma convivência sem segredos (Jo 15,15) que supera as bar­reiras provenientes de religião, classe, sexo e raça (cf Gl 3,28; Cl 3,11; 1 Cor 12,13). Esta comunhão (koinonia), nascida do Pai (1Jo 1,3), do Filho (1 Cor 1,9), e do Espírito Santo (2 Cor 13,13; Fil 2,1), se traduz em comunhão fraterna com partilha de bens.

3ª coluna:  A fração do pão: nova fonte da vida comunitária

A expressão fração do pão vem das refeições judaicas, onde o pai partilhava o pão com os filhos e com aqueles que não tinham nada. A fração do pão lembra­va as muitas vezes que Jesus tinha partilhado o pão com os discípulos e entre os pobres (Jo 6,11). Lembrava o gesto de partilha que abriu os olhos dos discípulos para a presença viva de Jesus no meio da comunidade (Lc 24,30-35). Significava sobretudo o gesto supremo do "amor até o fim" (Jo 13,1), a eucaristia, "a comunhão com o sangue e o corpo de Cristo" (1 Cor 10,16), a Páscoa do Senhor (1 Cor 11, 23-27), a memória da sua morte e ressurreição (1 Cor 11,26) que garante a vida aos que doam a vida pelos outros. A fração do pão era feita nas casas e não na majestade do templo (At 2,46; 20,7); era o lugar da liturgia "em Espírito e Verdade" (Jo 4,23). Muitas vezes, porém, a rea­lidade ficava abaixo do ideal. Paulo critica os abusos que ocorriam na comunidade de Corinto (1 Cor 11,18-22.29-34).

4ª coluna:  As Orações e a Palavra: novo ambiente da vida comunitária

Os apóstolos tinham uma dupla tarefa: “per­manecer assíduos à Oração e ao ministério da Palavra” (At 6,4). Através da Oração, os cris­tãos permaneciam unidos entre si e a Deus (At 5,12b), e se fortaleciam na hora das per­segui­ções (At 4,23-31). Apesar de seguirem uma doutrina diferente da tradicional, não rompiam com os costumes da piedade do povo, mas continuavam frequentando o Templo (At 2,46). Era lá que o povo ex­primia e vivia sua fé, e ia para rezar. Eles eram conhecidos como o grupo que se reunia no pórtico de Salomão (At 5,12). Tinham a simpatia do povo (At 2,47).

A Palavra, a Bíblia, era o livro de cabeceira, a gramática para poder ler e entender o que Deus estava falando pelos fatos da vida; a luz que os iluminava no cami­nho. Quando perseguidos, reliam o Antigo Testamento (At 4,27-31). Faziam como Jesus que, pela oração, enfrentava a tentação (Mc 14,32). Deste modo, provoca­vam um novo Pentecostes (At 4,31). A Bíblia era não só luz, mas também fonte de força.

Conclusão final: Fraternidade orante e profética no meio do povo

Nos resumos da espiritualidade carmelitana, sempre aparecem estas três palavras chaves: contemplação, fraternidade e profecia. Outra maneira para dizer a mesma coisa é fraternidade orante e profética no meio do povo. Fraternidade é o grande desafio de hoje: saber criar comunhão entre pessoas diferentes. Nos dois números finais, a Regra insiste na maturidade da vida fraterna e na dimensão de fé com que deve ser vivido o relacionamento prior-súdito e súdito-prior. A Regra coloca o exercício do poder na sua dimensão profética. A vida fraterna proposta pela Regra do Carmo não subsiste pela força da autoridade, mas pelo compromisso de cada um. É vida frágil, por isso é forte. É o sangue da Regra que ajuda a fazer crescer o Homem Interior, o Homem Novo. Ajuda a viver em obséquio de Jesus, na fraternidade orante e profética, junto dos "menores".

Resumindo: Conforme a Regra, a fraternidade carmelitana deve ser uma fraternidade que luta (RC 18-19), que trabalha (RC 20) e que silencia (RC 21). Fazendo isto, ela deixa aflorar a força do silêncio de Deus. Essa força aflora através da oração pessoal (RC 10), através da oração comunitária (RC 11), através da opção pelos pobres (RC 12-13), através da Eucaristia diária (RC 14), e através da revisão semanal e a correção fraterna (RC 15). Vivendo assim, cria-se um relacionamento maduro entre prior e súdito (RC 22) e entre súdito e prior (RC 23) que irradia a Boa Nova. A fraternidade assim vivida torna-se uma Boa Nova de Deus sobretudo para os pobres.

Agora no fim, retomamos a chave de leitura da Regra que foi apresentada no início:

I. Prólogo (RC 1-3)

RC 1: Saudação e Bênção. 
RC 2: O rumo da vida de todos: viver em obséquio de Jesus Cristo. 
RC 3: O projeto comum, próprio dos carmelitas.

II. A infra-estrutura da vida comunitária (RC 4-9)

RC 4: O Prior e os Votos: assumir o projeto da Comunidade.
RC 5: O Lugar de Moradia: preservar o deserto interior.
RC 6: A Cela dos Frades: garantir o diálogo com Deus.
RC 7: A Refeição em comum: conviver em fraternidade.
RC 8: A Estabilidade no Lugar: assumir a forma de vida dos mendicantes.
RC 9: A Cela do Prior na entrada: acolher e encaminhar os visitantes.

III. Os pontos básicos do ideal da Vida Carmelitana (RC 10-15)


RC 10: Na cela: meditar dia e noite na lei do Senhor e vigiar em orações.
RC 11: Em comunidade: o Ofício Divino ou a reza do Pai Nosso.
RC 12: Na vida: opção do Carmelo pelos "menores" através da comunhão de bens. 
RC 13: No dia-a-dia: mitigação em vista das necessidades.
RC 14: Na capela: a memória de Jesus através da Eucaristia diária. 
RC 15: Compromisso de todos: revisão semanal e correção fraterna.

IV. Os meios para alcançar o ideal (RC 16-21)

RC 16: O jejum: santificar o tempo, desde a festa da Exaltação da Cruz até à Páscoa.
RC 17: A abstinência de carne: passar pelo nada para chegar ao tudo.
RC 18: A condição humana: fragilidade que pede resistência.
RC 19: A luta da vida e as armas espirituais: não desistir nunca.
RC 20: O trabalho: ocupar o tempo e providenciar o próprio sustento.
RC 21: A prática do silêncio: esvaziar-se para Deus e os irmãos.

V. Recomendações finais para uma convivência madura (RC 22-23)

RC 22: O prior como servidor dos irmãos. 
RC 23: O respeito dos irmãos para com o prior.

VI. Epílogo (RC 24)

RC 24: Discernimento, e opção dos pobres pelo Carmelo.
 

Carlos Mesters, O. Carm.

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