Testemunhar o Senhor na Renúncia e na Cruz
“Não penseis que Eu vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas a espada. De facto, vim separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora da sua sogra, de maneira que os inimigos do homem são os da sua própria casa… Quem não toma a sua cruz para Me seguir, não é digno de Mim. Quem encontrar a sua vida há-de perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de Mim, há-de encontrá-la” (Mt 10,34-35.38-39).
Pode parecer-nos dura esta advertência de Jesus: Ele não veio trazer paz à terra, mas a espada, a separação do que nos é familiar, a cura dos nossos afetos, a libertação das nossas seguranças, onde buscamos apoio, conforto, reconhecimento, tranquilidade e paz, mas que, na realidade, nos inquietam, acorrentam e fazem sofrer. Jesus, porém, e Maria, viveram-na à letra. Jesus não foi compreendido, mas antes rejeitado pelos grandes e poderosos deste mundo, acabando por ser morto na cruz. Também Maria, sua Mãe, sofreu muitas vezes, não apenas enquanto esteve junto à cruz.
O caminho de Jesus é também o caminho dos seus discípulos, de nós, carmelitas, chamados a viver em seu obséquio. O sofrimento, a dor, a incompreensão e as dificuldades fazem parte da existência humana, tal como no-lo recorda a Regra: “a vida do homem sobre a terra é um tempo de provação e todos os que querem viver piedosamente em Cristo sofrem perseguição” (R 18; cf. Jb 7,1; 2Tm 3,12). Estas realidades dolorosas não nos serão poupadas porque temos fé – isso seria interesse! –, mas fazem parte da nossa vida. Elas, podem, no entanto, ser transformadas por nós, cristãos, de dura e incontornável necessidade em atos livres de amor. A isso nos incita a Regra: “Esforçai-vos por vos revestir da armadura de Deus” (R 18). Como?
Protegendo, antes de mais, o nosso peito “com pensamentos santos” (R 19). Como este: “Nós sabemos que tudo coopera para o bem daqueles que amam a Deus… Estou certo de que nada nos poderá separar do amor de Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8,28.38.39). Santa Teresinha resume-o assim: “Tudo é graça” (Caderno amarelo, 5 junho, nº 4). E São João da Cruz explicita: “Deus sabe o que nos convém e tudo ordena para nosso bem… Não pense em mais nada, senão que é Deus quem tudo dispõe. E onde não há amor, ponha amor e daí tirará amor” (Carta 27).
Depois, sendo realistas: “a humildade é andar na verdade” (6 Moradas 10,7). De facto, quem pensa encontrar paz no mundo, engana-se, porque, como diz Santa Teresa, “não há paz na terra” (Poesia 29), e quem quiser seguir Cristo acomodando-se ao mundo, viverá em “guerra contínua” (Meditações sobre os Cantares 2,1). É só em Jesus e na sua Palavra que se encontra a paz nesta vida: “Disse-vos isto, para que tenhais paz em Mim; no mundo tereis tribulações, mas tende confiança: Eu venci o mundo” (Jo 16,33). Como nos recorda o Papa Francisco na exortação A alegria do Evangelho (EG): “a fé conserva sempre um aspeto de cruz, uma obscuridade que não tira firmeza à sua adesão. Há certas coisas que só se compreendem e apreciam a partir desta adesão que é irmã do amor” (42).
Nem sempre é fácil acreditar. Não só para aqueles a quem anunciamos Cristo, mas também para nós, suas testemunhas. O próprio Jesus nos adverte que “os inimigos do homem são os da sua própria casa” (Mt 10,36). O Carmelo entendeu sempre esta passagem como um apelo a vigiar sobre o nosso coração, que tantas vezes nos engana e trai. Para seguir a Cristo é preciso abnegar-se, morrer a si próprio, pois “quem perder a sua vida por causa de Mim, há-de encontrá-la” (v. 39).
Na nossa ação evangelizadora podemos deparar com algumas cruzes interiores e exteriores. Talvez a mais subtil seja “a ânsia hodierna de obter resultados imediatos”, que “faz com que… não se tolere facilmente tudo o que signifique alguma contradição, um aparente fracasso, uma crítica, uma cruz” (EG 82). “Gera-se assim… o pragmatismo cinzento da vida quotidiana da Igreja, no qual… a fé se vai deteriorando e degenerando em mesquinhez”, desenvolvendo “a psicologia do túmulo… Chamados a iluminar e a comunicar vida, acabam por se deixar cativar por coisas que só geram escuridão e cansaço interior… Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!” (EG 83).
Outra cruz pode ser a “desertificação espiritual” que se produziu “nalguns lugares”, inclusive na “própria família ou lugar de trabalho…, onde há que conservar a fé e procurar irradiá-la. Mas é precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de crer, a sua importância vital... No deserto, é possível redescobrir o valor daquilo que é essencial… No deserto, existe sobretudo a necessidade de pessoas de fé que, com as suas próprias vidas, indiquem o caminho para a Terra Prometida, mantendo viva a esperança. Em todo o caso, aí somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de beber aos outros” (EG 86).
Outras cruzes ainda poderão ser “a experiência do fracasso, as mesquinhezes humanas que tanto ferem… Pode acontecer que o coração se canse de lutar, porque, em última análise, se busca a si mesmo num carreirismo sedento de reconhecimentos, aplausos, prémios, promoções” (EG 277).
Para lhes fazermos frente, é necessário “re-cordar o amor das origens” ( cf. Ap 2,4): “Precisamos de nos deter em oração para pedir a Jesus que volte a cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir que a sua graça abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial… Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a sua vida nova!... A melhor motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor, é deter-se nas suas páginas e lê-lo com o coração… É urgente recuperar o espírito contemplativo”. (EG 264).
Só assim seremos capazes de “dar razão da nossa esperança,…'com mansidão e respeito' (1Pd 3,16)»,… sem nos cansarmos de 'fazer o bem' (Gl 6,9) e sem pretendermos aparecer como superiores, antes 'considerai os outros superiores a vós próprios' (Fl 2,3)” (EG 271).
Revestidos da armadura de Deus, com a couraça do amor; empunhando o escudo da fé; protegidos com o capacete da esperança, empunhando a Palavra, vivamos como discípulos de Cristo, levando com alegria a todos, como Maria, o Evangelho da paz (cf. Ef 6,15).
Pedro Bravo, O. Carm.