Bruscamente, sem pré-avisos, a nossa vida foi sorvida para o interior de uma daquelas imagens inquietantes de Giovanni Battista Piranesi, cujo terceiro centenário de nascimento, por coincidência, este 2020 assinala. Poucas vezes se descreveu a angústia, o efeito do caos, as intransigentes paredes de vidro do isolamento com a precisão que o artista alcançou nas suas alegorias sombrias, onde os seres humanos parecem pontos ainda mais minúsculos e torturados, ilhas ainda mais desprotegidas, num mundo contaminado e distorcido até ao absurdo. A fantasmagórica visão de uma ponte levadiça que se recolhe, numa das gravuras mais famosas de Piranesi, – determinando com isso uma incomunicabilidade forçada – dá-nos como que o símbolo para representar, quase à pele, uma realidade que se transmuta, do dia para a noite, em forma distópica. Pois o desconcertado sentimento geral que hoje predomina é esse: o de que entramos, à maneira de Jonas no ventre da baleia, nas entranhas imprevisíveis e confusas de uma distopia.
Dentro de um mundo desconhecido
E, temos de reconhecer, esta situação apanha as nossas sociedades impreparadas. E não falo já do ponto de vista dos recursos sanitários para fazer face a um desafio tal. Falo do ponto de vista da nossa experiência e daquilo que a nossa memória pode extrair em nosso socorro. Falo da nossa visão do mundo e da existência. Do que julgamos distante e longínquo e do que está efetivamente perto. Do que que temos por estritamente individual e do que é coletivo. Do que consideramos que nos protege e do que nos expõe. Do que temos (ou tínhamos) por adquirido ou como completamente improvável. Da consciência da nossa real força e da nossa exata vulnerabilidade. Da dimensão do medo que podemos experimentar e dos trabalhos necessários para trazer, à alma, o nosso quinhão de paz. Não, não é fácil, repentinamente, constatar que sabemos, de nós próprios e da vida, menos do que pensávamos. Não é fácil despertar dentro de um mundo desconhecido, como o pobre caixeiro viajante, na novela de Kafka. Há uns dias atrás, o escritor italiano Antonio Scurati recordava que a nossa geração tem sido uma jeunesse dorée na história europeia. Todas as coisas más (que, na verdade, nunca deixaram de acontecer) aconteciam, porém, lá longe e aos outros, eram tragédias que assistíamos pela televisão, em diferido. E nem nos dávamos conta que a perceção que construímos das nossas sociedades – a da humanidade com mais saúde, com maior esperança de vida, com mais segurança e proteção, melhor nutrida e vestida – assenta num contexto histórico que não é inabalável ou, pelo menos, não tão inabalável como acreditávamos.
A necessidade de parábolas
Um dado curioso, no atual contexto, tem sido a necessidade de encontrar parábolas. Sem chaves interpretativas para lidar interiormente com a situação presente, assiste-se a uma corrida a alguns textos clássicos capazes não só, por comparação, de ilustrar aquilo que vivemos, mas também de nos fornecer ferramentas narrativas para podermos contar, a nós próprios e uns aos outros, o que está a acontecer. Que, de uma hora para outra, tenham voltado ao top dos livros mais vendidos, em alguns países, “A peste”, de Albert Camus, ou “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, não deixa de ser um elemento significativo. O texto de Saramago, uma poderosa e escuríssima parábola moral, cuja escrita ele próprio descreveu como das mais dolorosas experiências por que passou (“são 300 páginas de constante aflição” ), está repleto de termos que se impuseram recentemente ao jargão dos nossos quotidianos: epidemia, infeção, quarentena, medidas de coerção, debate ético sobre o valor da vida, carência, medo e compaixão. Mas não só as palavras como que ultrapassaram o estrito campo da ficção e se infiltraram no nosso domínio histórico. Saramago encena ali, com genial agudeza, os fantasmas e os pesadelos que temos de fazer tudo para evitar. Porque, não nos enganemos, tudo pode ser sempre pior. Nesse sentido, o seu romance permite uma leitura preventiva em relação à realidade. Por sua vez, o romance de Albert Camus, publicado em 1947, constitui uma incisiva reflexão sobre o mal, e certamente ali, como pano de fundo, está a sombra macabra do nazismo, denunciado como a “peste” que encurralou, naqueles anos, a nossa humanidade. Mas Camus escolhe para narrador-protagonista da sua simbólica crónica de resistência um médico. E isso certamente permite uma ligação direta ao presente, onde queremos sobretudo ouvir o que pensam os virólogos, os infectologistas, os especialistas em contágio, os clínicos em geral. De repente, o doutor Bernard Rieux, que desde aquela manhã de Abril em que, saindo do consultório, se torna o narrador-protagonista do que sucede na cidade algerina de Oran, é um interlocutor plausível e familiar também daquilo que experimentamos, e para o qual nos faltam ainda narradores. E há três coisas que aprendemos ouvindo o Dr.Rieux contar “A Peste”. A primeira delas é que a sobrevivência, perante surtos infeciosos desta dimensão, passa por adotar os cordões sanitários e seguir escrupulosamente, de forma continuada, as regras terapêuticas estabelecidas. A segunda é que a declaração de estado de peste e do fecho da cidade são também informações para uso das almas, pois colocam em questão aspetos da condição humana e do seu destino. A terceira, e não menos decisiva, é que, no meio de toda esta tribulação, abrem-se imprevistos espaços para a fraternidade entre os seres humanos.
Podemos reaprender tantas coisas
Parece paradoxal, mas o tempo presente representa também uma oportunidade para nos reencontrarmos. Confinados a um isolamento compreendemos talvez melhor o que significa ser – e ser de forma radical – uma comunidade. A nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas: todos estamos nas mãos uns dos outros, todos experimentamos como é vital esta interdependência, esta trama feita de reconhecimento e de dom, de respeito e solidariedade, de autonomia e relação. Todos esperam uns dos outros e estimulam-se positivamente a que façam a sua parte. Todos contam. Os cuidados individuais, que somos chamados a exercitar, não são a expressão de uma fobia ou do interesse próprio apenas, como se destinados a nos enclausurar na torre de marfim do nosso ego. São, sim, a forma de colaborar para uma construção maior, de colocar os outros no centro, de sacrificar-se por eles, de privilegiar o bem comum. Esta é a hora em que podemos, de facto, reaprender tantas coisas. Podemos reaprender a estar nas nossas casas, mas também a sentir que depende de nós o nosso prédio, a nossa rua, o nosso bairro, a nossa cidade, o nosso país, dando substância efetiva a palavras, tantas vezes destituídas dela, como são as palavras proximidade, vizinhança, humanidade, povo e cidadania. Podemos reaprender a utilizar as redes sociais não só como forma de divertimento e de evasão, mas como canais de presença, de solicitude e de escuta. Sem nos tocarmos, podemos reaprender o valor da saudação, o estímulo de um cumprimento, a incrível força que recebemos de um sorriso ou de um olhar. Sem que os nossos braços se estendam na direção uns dos outros podemo-nos abraçar afetuosamente, como já o fazíamos ou de um modo mais intenso ainda, transmitindo nesses abraços reinventados o encorajamento, a hospitalidade, a certeza de que ninguém será deixado só. Sem nos conhecermos podemos finalmente reaprender a não votar ninguém à indiferença ou a não tratar os nossos semelhantes como desconhecidos. Nenhum ser humano nos é desconhecido, pois sabemos por nós próprios o que é um ser humano: o que é esse pulsar de medo e de desejo, essa mistura de escassez e de prodigalidade, esse mapa que cruza o pó da terra com o pó das estrelas.
A distância e a proximidade
Conhecemos a semântica da proximidade e da distância, e, para dizer a verdade, precisamos de ambas. São elementos de comprovada importância na arquitetura do que somos: sem uma ou sem outra nós não seríamos. Sem a proximidade primordial nem seríamos gerados. Mas também sem a separação e a distinção progressivas a nossa existência não teria lugar. Na linguagem parabólica do livro do Génesis, Deus cria o homem amassando-o da argila da terra e oferecendo-lhe o seu próprio sopro, mas depois deixa o casal humano a sós no jardim para que a aventura da liberdade possa ter início. Do mesmo modo, cada um de nós, foi chamado a construir o seu mundo interno no balanço destas duas palavras: fusão e distinção. E através delas descobrimos, a tatear, o significado do amor, da confiança, do cuidado, da criação e do desejo. É verdade que no campo pessoal e social há tantas distâncias que são distorcidas formas de afirmar barreiras, de inocular com o vírus ideológico da desigualdade o corpo comunitário, de desnivelar a existência comum com assimetrias de toda a ordem (económicas, políticas, culturais, etc). E, temos de reconhecer igualmente que tantas formas de proximidade não passam de prepotência sobre os outros, exercício perturbado de poder, como se os outros fossem propriedade nossa. A distância e a proximidade precisam, por isso, de ser purificadas. Este tempo em que repentinamente ficamos todos mais perto (penso nas famílias em quarentena numa casa, 24 horas sobre 24 horas) e todos mais separados (é recomendado para o contacto interpessoal que se mantenha, pelo menos, 1 metro de distância) pode representar uma oportunidade para redescobrir aquelas proximidade e distância que garantem a qualificação ética da existência.
As modalidades do tempo
Que somos nós se não escravos do tempo? Vivemos sob a ditadura do tempo cronológico: aquele tempo utilitário e voraz, aquele contador ininterrupto que não dorme, aquele corredor que ninguém consegue travar. Somos literalmente engolidos pelo tempo, como a sugestiva imagem da mitologia diz ser a prática de chrónos, o inexpugnável rei dos titãs que, sem piedade, devorava os próprios filhos. E damos por nós a habitar dentro desse processo de devoração, correndo na ofegante corrente dos dias, acreditando que nada pode parar, temendo qualquer ralentização ou pausa e deixando com isso adiado o coração para outro século; e, com isso, adiando a vida para outra vida. Estamos sempre a empurrar para o fim de semana, ou então para as férias, ou para uma ocasião propícia que nunca chega. Porque o tempo não estica. Mas os inconformados gregos, a par do chrónos, tinham uma outra conceção de tempo para a qual reservavam o termo kairòs. No chrónos predomina uma visão quantitativa do tempo, uma espécie de contabilização vertiginosa, uma inalterável linha contínua que nos aprisiona na sua teia. E uma coisa sabemos: não é essa experiência de tempo que dará uma alma ao mundo. Porém, o tempo pode também experimentar-se como uma realidade qualitativa, isto é, pode ser finalmente definido como “o tempo de”, “o tempo para”. O que se sublinha não é tanto a duração, mas o momento propício, o ponto determinante, a hora do acolhimento da graça capaz de alterar os referentes do mundo. Se assim acontecer, o chrónos foi transformado em kairòs.
De quarentena a tempo gratuito
No imaginário contemporâneo o termo “quarentena” remete-nos para mundos recuados, que a modernidade superou. Quanto muito, podia-se aplicar a alguns poucos casos individuais, onde a gravidade das patologias impunha essa arcana prática securitária. A ideia de metrópoles inteiras ou de países em quarentena constitui uma absoluta estranheza. Não admira, por isso, que a primeira reação seja a de medo e dê lugar às formas mais diversas de expressão de claustrofobia exasperada. Aqueles que - movidos por motivações religiosas ou por escolhas conscientes de vida - aprenderam a tornar fecunda e solidária a própria solidão fizeram antes um percurso iniciático, educaram o seu coração nesse sentido, mas tiveram de se posicionar contra a corrente. De facto, essa educação falta a uma sociedade onde os estímulos maiores vão na direção contrária: na linha do escapismo, do atordoamento consumista, da vida massificada e dispersa. Por isso, somos convocados como sociedades a uma experiência pedagógica. Que a quarentena não seja só um violento recurso forçado, do qual vemos apenas os aspetos negativos, mas, mesmo com indesmentível esforço, nos possa ajudar a transmutar o chrónos em kairòs. Passamos uma vida inteira a repetir que “time is Money” e nem nos apercebemos do custo existencial dessa proposição. Este pode ser o momento para irmos ao encontro daquilo que perdemos; daquilo que deixamos sistematicamente por dizer; daquele amor para o qual nunca encontramos nem voz, nem vez; daquela gratuidade reprimida que podemos agora saborear e exercer. Temos de olhar para a quarentena não apenas como um adverso congelamento da vida que nos deixa manietados, elencando de modo maníaco o que estamos a perder. Sairemos mais amadurecidos se a aproveitarmos como um dom, como um espaço plástico e aberto, como um tempo para ser.
Não basta encher o frigorífico
A nossa segurança não pode provir da despensa bem guarnecida ou do frigorífico a abarrotar. A vida é mais do que a materialidade necessária à sobrevivência. É isso, mas é mais do que isso. Esta estação que vivemos representa, assim, também uma oportunidade para refletir sobre aquilo que nos nutre. É que nos alimentamos de tanta contrafação, reduzindo a vida a um fast-food, de preferência sem pensar muito. É que nos alimentamos de tiques rotineiros e empalidecidos; de ideias-feitas que não deixam lugar a percursos de escuta e de descoberta; de automatismos que pairam como pura abstração; de imagens filtradas que reduzem sempre mais a realidade a uma coisa plana, esvaziando-a da sua natureza rugosa, polifónica e concreta; de palavras que, mais do que uma real declaração de presença, se parecem a uma estratégia que nos subtrai às chamadas sucessivas que a vida faz. Recordo o discurso sapiencial de Jesus e como esse restabelece o contacto da nossa realidade com as suas fontes mais profundas: “quanto à vossa vida, não coloqueis o cuidado no que haveis de comer ou beber; nem quanto ao vosso corpo, no que haveis de vestir. Pois não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo, mais do que aquilo que o reveste? Reparem nas aves do céu, que não semeiam, nem colhem, nem armazenam em celeiros; e o Pai celeste as alimenta... Reparem nos lírios do campo: eles não trabalham, nem tecem. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um só deles” (Mateus 6:25-29). Numa das horas mais opacas do século passado, uma rapariga holandesa de nome Etty Hillesum escreveu num campo de concentração este comentário às palavras do evangelho de Mateus: “Uma vez escrevi num dos meus diários: ‘gostava de tatear com as pontas dos dedos os contornos desta época’. Nessa altura estava sentada à secretária sem saber bem como atingir a vida... E então, de repente, fui lançada num foco de sofrimento humano numa das múltiplas frentes espalhadas por toda a Europa. E foi aí que eu experimentei isto abruptamente: a partir dos rostos das pessoas, de milhares de gestos, de pequenas manifestações, de biografias, comecei a interpretar estes tempos... Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo”. O que significa sermos capazes de olhar os lírios do campo e as aves do céu? Significa adotar uma atitude contemplativa. Precisamos de olhar, mas não apenas como habitualmente o fazemos, pois a maior parte das vezes o nosso olhar morre junto aos sapatos. Somos desafiados a um olhar que vá além de nós, que supere os limites do nosso tracejado, que transcenda o perímetro das nossas preocupações imediatas, que se projete para lá do que sozinhos conseguimos ver... porque a vida não se resolve apenas com aquilo que trazemos ou conseguimos, mas sim no diálogo misterioso entre a nossa escala e a escala mais ampla que a própria vida é; no diálogo entre o que surge como conquista e o que brota como inexplicável dom; na interação entre o aqui e o agora e o que é da ordem do eterno.
As histórias de amor que estão a ser escritas
No meio da emergência que vivemos, não podemos esquecer o testemunho humano altíssimo que está a ser dado por todos os cuidadores. Esses são heróis desta história coletiva. E são milhões que, de forma anónima, e com um extraordinário sentido de abnegação, mantêm abertas fábricas e serviços, continuam a produção alimentar e de bens indispensáveis, vigilam pela segurança e, claro, nos hospitais combatem por todos nós na primeiríssima linha. Enumero três histórias minúsculas no universo de bem e dedicação que, nestes dias tão difíceis, se está também a construir. No sábado fui à pequena padaria do meu bairro. É o proprietário que atende ao balcão, um senhor dos seus setenta e muitos, um olhar cheio de cordialidade, um humor sempre a assomar. Vi-o, como o nunca vi, desolado, meditabundo, exausto. Perguntei-lhe se a padaria continuaria aberta. E ele confessou que por ele já a teria fechado. Mas depois começa a pensar nos clientes, nas pessoas que serve há tantos anos, muitas delas idosas como ele: como farão, se não há outra padaria nas redondezas! Outra história li-a no jornal. Uma senhora ligou para o posto da polícia do seu quarteirão, que naturalmente continua aberto, apenas para fazer esta pergunta: “E vocês como estão?”. A terceira é contada, sem palavras, por uma fotografia que mostra os bastidores de um hospital. Uma enfermeira adormecida com a cabeça em cima de um teclado do computador. Tem os óculos e a máscara colocados no rosto. Os braços caídos ao longo do corpo, sem nenhum apoio. É uma imagem comovedora, no seu desamparo extremo, porque se percebe tudo. Há quantas horas aquela mulher não dormia? E que dimensão tem de ter o cansaço, que peso tem de atingir para fazer tombar assim um corpo? Há já quem diga que a geração que vive o turbilhão desta pandemia olhará inevitavelmente para a vida de outra maneira. Esperemos que sim. Mas que na equação, que porventura despoletará uma mudança de mentalidade, entre não só o poder desconhecido do medo e da urgência, que nos faz relativizar tanta coisa. Que saibamos considerar devidamente todas as histórias de amor que estão a ser escritas, a começar por esta inteira multidão de profissionais e de voluntários que aproximam da nossa experiência hodierna a inesquecível parábola do bom samaritano.
As mãos sustêm a alma
Uma das esculturas mais conhecidas de Rodin revela, numa primeira abordagem, uma impressionante simplicidade. Trata-se de uma composição em pedra constituída por um par de mãos. Na verdade, duas mãos direitas, de duas pessoas diferentes cujos braços se entrecruzam e alongam para que os dedos, no ponto mais alto, se toquem, desenhando a forma de um arco. Um programa aparentemente elementar, portanto. A poesia deflagra – e, desse modo, nos remete para uma outra visão da obra - quando nos é anunciado o seu título. Primeiramente, Rodin pensou denominá-la “A arca da aliança”, mas optou depois por chamá-la “A catedral”. O que é uma catedral? A escultura de Rodin pode socorrer-nos na necessidade atual de obter uma resposta. Uma catedral não é apenas um território sagrado exterior onde os nossos pés nos levam. Nem é apenas um templo fixado num determinado espaço. Nem apenas um porto de abrigo que os mapas assinalam. Uma catedral também se alcança com as nossas mãos abertas, disponíveis e suplicantes, onde quer que nos encontremos. Porque onde está um ser humano, ferido de finitude e de infinito, está o eixo de uma catedral. Onde possamos realizar essa experiência vital de busca e de escuta para a qual a imanência não é resposta. Onde as nossas mãos se possam erguer para o alto em desejo, urgência e sede. Esse será sempre um dos eixos da catedral. O outro eixo é o mistério de Deus que o desenha, avizinhando-se de nós e segurando-nos, mesmo quando não nos apercebemos logo, mesmo quando o silêncio, o duro e espesso silêncio, parece a verdade mais tangível. Foi Pascal que escreveu que “as mãos sustêm a alma”. Hoje precisamos de mãos – mãos religiosas e laicas – que sustenham a alma do mundo. E que mostrem que a redescoberta do poder da esperança é primeira oração global do século XXI.
José Tolentino Mendonça, in: E. A Revista do Expresso, 21 de Março 2020