«Reconheceram-No ao partir do pão» (Lc 24,35). Este foi certamente o ponto focal do 5º Congresso Eucarístico Nacional, que nos propõe o sacramento eucarístico como possibilidade de reconhecer o Ressuscitado no meio de nós. Foi isso que aconteceu aos discípulos de Emaús, num momento em que se sentiam desorientados e sem elã, quase cedendo à tentação de partir em retirada. Connosco não poderá ser de outra maneira. A Igreja recomeça porque reencontra Jesus. A Igreja intercepta o seu futuro quando abre as portas a Cristo e se ancora com decisão nesse programa corajoso e real de revitalização que a eucaristia representa. Ontem como hoje a Igreja encontra o sentido da sua vocação e missão «ao partir do pão». Por isso estamos aqui, queridos irmãos e irmãs. Somos muitos, mas uma mesma razão nos acomuna como se fôssemos um só. Estacionamos aqui para esta fraterna celebração, mas com o compromisso de irmos mais longe, de nos tornarmos discípulos e missionários comprometidos. E queremos receber o pão da vida, porque queremos aprender de Jesus a arte de se tornar pão.
Pensemos no significado do pão. As coisas mais belas e infelizmente também as mais infelizes acontecem em nome do pão. Falar do pão é falar da subsistência, das condições da vida material, daquilo que é tido como indispensável à manutenção da vida. Um poeta escreveu que o pão repete a imagem do ventre da mãe, pois está associado à germinação, à plenitude e à vontade de viver. É verdade! O homem não pode viver sem pão. Essa é também a sua realidade.
O próprio Jesus o deixou expresso nos relatos da multiplicação dos pães (Mc 6,34-44; 8,1-9; Mt 14,13-21; 15,12-38; Lc 9,10-17; Jo 6,1-15). A fome e as necessidades materiais do ser humano não lhe são indiferentes. Quando Jesus nos interpela questionando-nos sobre aquilo de que vivemos para lá do pão, não é para nos fazer fugir do realismo do pão, mas para que o encaremos como lugar que tem de ser investido de Espírito. O próprio Jesus há-de mostrar como se faz, quando no contexto da Última Ceia, pegar no pão e disser: «Comei, este pão, que não é só pão; que é o meu corpo, o dom inteiro da minha vida entregue por vós». Mas sabemos como a disputa pelo pão pode torná-lo um referente anti-eucarístico. Instrumentalizado pelo egoísmo, o pão torna-se não o símbolo do amor mas do egoísmo; não o que funda a prática da fraternidade, mas o signo da desigualdade social, da inquietante ideologia da exclusão e do descarte. O pão pode ter o perfume da paz ou estar na origem dos inúteis conflitos tóxicos e das devastadoras guerras. O pão pode ser aquilo que une ou a ferida que violentamente separa.
A pergunta é se haverá solução? Se este drama se pode alguma vez resolver? Ou se estamos condenados a que o pão nos torne inimigos em vez de irmãos e iguais? A pergunta para nós cristãos é esta: qual é o papel da eucaristia na gestação de comunidades de esperança e na edificação de um mundo melhor?
A Leitura do Livro do Deuteronómio, que hoje escutámos, recorda que o horizonte da nossa humanidade não se esgota na pura materialidade. O humano em nós não se realiza na obstinada e exclusiva procura do ter, mas é convocado a mais: é convocado a escutar a universal vocação divina que o atravessa. Sem o reconhecimento dessa vocação divina, o homem não chega a humanizar-se. Fica aquém do seu destino e não compreende, de modo cabal, a dignidade do seu Ser.
Se pensarmos bem, causa arrepios a altíssima dignidade que Deus concedeu ao Ser Humano. Isso mesmo nos recorda o texto do apóstolo Paulo: «Deus que disse, “Das trevas brilhará a luz” fez brilhar a luz em nossos corações para que se conheça em todo o seu esplendor a glória de Deus, que se reflecte no rosto de Cristo» (2 Cor 4,6). É essa altíssima dignidade que Cristo não desiste de restituir e restaurar: espelhar no rosto de cada ser humano o Seu próprio rosto.
Do mesmo modo, quando o Evangelho de Marcos apresenta Jesus como o “Senhor do sábado” sublinha que Ele oferece uma visão inovadora sobre como se interpreta a vida e o pão, pois desloca-nos da dureza de coração à disponibilidade para procurar e salvar a vida frágil, ferida ou perdida. Jesus vem dizer-nos que é possível caminhar nessa direcção. De facto, se não sentirmos esse desafio a intervir para remover aquilo que atrofia a existência dos nossos semelhantes é porque estamos, mesmo sem nos darmos conta, espiritualmente atrofiados. Ora, não queremos ser uma Igreja que vive atrofiada. Queremos ser uma Igreja desperta, que se implica a remediar a atrofia e a preparar uma nova sementeira nos corações.
Desde os inícios, a Eucaristia vem designada como «a fracção do pão», porque Jesus é claro connosco: a vida torna-se generativa e fecunda na medida em que arrisca ser vida repartida e partilhada. Só dessa maneira. A eucaristia oferece-nos o mapa e a viagem. O pão que se concentra apenas na sua autopreservação depressa endurece e ganha bolor. Só quem aceita a lição de Jesus descobre a própria existência como sementeira, transmissão de afecto, inscrição da esperança, nutrimento fraterno. Recordo o que disse, num campo de concentração, uma das grandes vozes místicas do século XX, Etty Hillesum: «Desejo ajudar Deus e tornar-me eu própria pão para inúmeras fomes». Celebrar a Eucaristia é assumir a responsabilidade de se fazer pão.
Queridos irmãs e irmãos,
Para a Igreja em Portugal este Congresso não é apenas um enésimo encontro para falar de si mesma: é uma oportunidade para relançar o elã e a esperança; para readquirir uma juventude de alma capaz de renovar a sua proposta e o seu estilo; para viver um sobressalto de futuro aprofundando aquilo que pode significar hoje a Espiritualidade Eucarística.
Há cinquenta e há cem anos atrás, exactamente aqui em Braga, a Igreja nacional viveu congressos eucarísticos procurando novas formas de presença cristã no mundo e novas linguagens para a evangelização. No ano em que celebramos 50 anos da democracia portuguesa, voltamos a celebrar o congresso eucarístico para repensar o contributo da Igreja na nossa sociedade em acelerada transformação e que experimenta desafios epocais tão grandes como, por exemplo, as alianças intergeracionais e interculturais a construir urgentemente no Portugal contemporâneo. Uma aliança que garanta o pão do futuro para os jovens hoje cercados pela precariedade e o pão do amor para os mais velhos que não podem ser postos fora da equação social porque já não são produtivos. Uma aliança que assente na compreensão da diversidade cultural como um enriquecimento comunitário e não como uma barreira à colectiva maturação do bem-comum.
Para a Igreja em Portugal, motivada pelo caminho sinodal, reforçada pela experiência da Jornada Mundial da Juventude, mobilizada pelas grandes linhas do magistério do Papa Francisco, abre-se aqui uma estação de renovação e de caminho. Há uma frescura, há um odor a Evangelho vivo, há uma imaginação do bem, que os nossos contemporâneos esperam da Igreja Portuguesa. São talvez três, nesta hora, os grandes chamamentos fundamentais.
1. Primeiro, a Igreja em Portugal é chamada a ser uma Igreja Eucarística. Isto é, uma Igreja que não se coloca a si mesma como prioridade, mas no centro coloca Cristo e retoma Dele as Palavras e os gestos, o modo de olhar cada pessoa e a visão global sobre a vida. Uma Igreja eucarística é o contrário de uma Igreja clericalista: é uma Igreja configurada sinodalmente, que valoriza a participação de todos os baptizados, que reconhece o papel do ministério ordenado, que cuida dos seus pastores e os acarinha, que investe nos ministérios laicais, que promove uma cultura eclesial de co-responsabilidade, que lê com profecia o lugar da mulher na Igreja. A Igreja Eucarística é uma Igreja de “portas abertas”, que se apresenta mais como experiência de serviço amoroso à vida, em vez da rigidez dos juízos que excluem. A Igreja Eucarística é uma Igreja que quer ser pão. Uma Igreja que vê clara a continuidade entre o santo fervor da liturgia e o santo dever da comunhão traduzida naquilo que São João Paulo II, que também que esteve neste santuário do Sameiro, descrevia como «a fantasia da caridade».
2. Em segundo lugar, a Igreja em Portugal é chamada a ser uma Igreja Samaritana. Uma Igreja que actualiza a linguagem da compaixão. Uma Igreja de proximidade, não indiferente nem esquiva, mas capaz de fazer suas, como exorta o proémio da Gaudium et Spes, «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e todos aqueles que sofrem». Uma Igreja especialista em humanidade que, como insiste o Papa Francisco, «não aponta o dedo, mas abre os braços». Uma Igreja enamorada pelo Evangelho e mobilizada pelo Seu anúncio. Recordo as palavras que não longe daqui escreveu o monge-poeta Daniel Faria: «escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão/ Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos!». A Igreja samaritana é aquela que multiplica os tempos de escuta, capaz de ser artesã de encontros para lá da sua zona de conforto ou do seu perímetro habitual, capaz de diálogos e de abraços que testemunham a maternidade e a paternidade incondicionais de Deus. Uma Igreja que sabe existir não para condenar o mundo, mas para lhe dar o pão que exprime o amor sem limites.
3. Em terceiro lugar, a Igreja em Portugal é chamada a ser uma “Igreja mariana”, esta que é a Terra de Santa Maria, aquela em cuja história Maria foi uma presença matricial e contínua. Retomo aqui as palavras de um importante teólogo do nosso tempo, Hans Urs Von Balthasar: «Sem a Mariologia o cristianismo ameaça desumanizar-se inadvertidamente. A Igreja torna-se funcionalista, sem alma, uma máquina febril incapaz de parar, dispersa em ruidosos projectos». Destacaria alguns traços da espiritualidade mariana que somos desafiados a redescobrir.
a) O primeiro deles é a gentileza. Na visita a Isabel, o evangelista Lucas afirma que Maria viaja apressadamente porque assume não a reivindicação do seu conforto, mas a urgência que o outro estava a viver. Uma vez chegada a casa de Isabel não toma a palavra em primeiro lugar. E depois coloca-se todo o tempo na posição de quem está ao serviço e não numa posição de poder. A gentileza é a expressão de um coração desarmado e manso, capaz de substituir a agressividade pela doçura e o conflito pelo reconhecimento das razões do outro. O mundo precisa de comunidades crentes, que sejam reservas de gentileza e de cuidado.
b) O segundo traço é a contemplação. A Igreja tem necessidade de fazer prevalecer, em vez de uma máquina funcionalista, a sua dimensão mística. A Igreja só interceptará a sede de espiritualidade do nosso tempo se também ela se colocar a caminho, peregrina das perguntas em vez de rotineira gestora de respostas. Talvez a Igreja precisa de re-aprender muitos deste peregrinar, como vivemos hoje, subindo ao Sameiro como Povo que canta a Deus as suas lágrimas e os seus sonhos. Não tenhamos medo dos recomeços! É que para escutarmos até ao fundo a Palavra de Deus, precisamos talvez pensar que ainda não a escutamos. Para celebrar a Eucaristia como mistério, temos que sentir e alimentar mais em nós um grandioso espanto. A fé mais necessária ao presente é, sem dúvida, a dos contemplativos, a dos enamorados da busca de sentido, a dos que se deixam esculpir pelo silêncio e, desse modo, recomeçam a aventura larga que o crer representa.
c) O último traço é a beleza. Como o pão é o alimento para o corpo, a beleza é o nutrimento da alma, sem o qual ela não persiste, nem ganha asas. Com Maria, a Igreja aprende a ser custódia e artífice da beleza. A começar pela beleza da Eucaristia, que tem de ser celebrada como uma “obra de arte” e vivida como a obra-prima que Jesus. Num tempo dominado pelo pragmatismo raso e pelas visões utilitaristas apenas, precisamos de uma nova mistagogia que inicie os cristãos na beleza de que são depositários. Por exemplo, São Francisco de Assis ensinava aos seus companheiros que deviam plantar um horto para retirar dele o alimento necessário. Mas nesse campo, deviam reservar um espaço para plantar flores, que são um outro pão.
Também, por causa da beleza, celebramos esta eucaristia de acção de graças no Encerramento deste 5º Congresso Eucarístico Nacional sob o olhar imenso, sob o olhar mais belo da Senhora do Sameiro.
E as nossas derradeiras palavras são para ti, Senhora, comovidos e confiados no teu esplendor. Como transportaste Jesus no teu seio, transporta a Igreja nesta hora de relançamento e esperança. Como apertaste Jesus contra o teu peito, dá-nos o afago e o estímulo dessa ternura. Como iluminaste o teu Filho com o materno sorriso, ilumina-nos, Mãe, agora. E como reza o cântico popular deste teu povo, querida Senhora do Sameiro, olha por todos estes teus filhos aqui presentes, “Tu podes, porque és a mãe de Deus, e deves porque és a nossa mãe!”.