Deixar-nos surpreender por Deus
O Papa Francisco diz na sua Carta O Rosto da Misericórdia: “Neste Jubileu, deixemo-nos surpreender por Deus. Ele nunca Se cansa de escancarar a porta do seu coração, para repetir que nos ama e deseja partilhar connosco a sua vida”. Como deixar-nos surpreender por Deus? Uma surpresa é algo que você não esperava e que acontece de repente. E quando a surpresa tem a ver com algo dentro da gente que, de repente, aparece iluminado por Deus, aí a surpresa é maior ainda. Deus, ele mesmo, é a maior surpresa. Eis algumas destas inacreditáveis surpresas de Deus:
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Ao ser assassinado na cruz, Jesus não fica com raiva nem pensa em vingança, mas pede perdão pelos seus assassinos: “Pai, perdoa, eles não sabem o que estão fazendo” (Lc 23,24).
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Ao lado de Jesus na cruz, um ladrão recebe esta promessa: “Hoje mesmo você estará comigo no Paraíso” (Lc 23,43). O primeiro que entrou no céu é um ladrão arrependido!
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Pedro quer saber quantas vezes deve perdoar: “Sete vezes?”. Sete significa sempre. Jesus responde: “Setenta vezes sete!” (Mt 18,27), isto é: “Setenta vezes sempre!”.
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Jesus está sentado à mesa na casa de pecadores e publicanos. Criticado pelos fariseus, responde: “Não vim buscar os justos, mas sim os pecadores!” (Mc 2,17).
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Na parábola, o filho mais novo pede: “Pai, me dá a herança!” (Lc 15,12). Com outras palavras: “Quero que o senhor morra!”. O Pai atende e faz festa para este seu filho.
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Ela foi apanhada em flagrante adultério. “Quem for sem pecado pode jogar pedra!”. Jesus disse: “Ninguém te condenou? Eu também não te condeno” (Jo 8,10).
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Judas o traiu. Pedro o negou três vezes. Todos o abandonaram. Ficou totalmente só. Sabendo de tudo isto, Jesus disse: “Depois da ressurreição espero por vocês na Galileia” (Mc 14,27-28).
Dá para você imaginar surpresa maior do que estas? O que devo fazer para deixar-me surpreender por Deus? Não temos nenhum meio para obrigar Deus a se manifestar a nós. Isto depende dele, só dele. Aqui também a Regra Carmelita (RC) oferece alguns conselhos.
Um primeiro conselho da Regra: Meditar dia e noite na Lei do Senhor
Este conselho diz respeito à carteira de identidade do Carmelo: “Permaneça cada um em sua cela ou na proximidade dela, meditando dia e noite na Lei do Senhor e vigiando em orações, a não ser que esteja ocupado em outros justificados afazeres” (RC 10). Este meditar constante dispõe o coração para uma atitude de entrega a Deus, para que Deus possa entrar e tomar conta dele. No Carmelo, oração e meditação não são uma atividade ao lado das outras atividades, mas são a própria vida do Carmelo. Não são um ladrilho ao lado dos outros ladrilhos, mas são a parede que sustenta todos os ladrilhos. Quando as outras atividades cessam, a meditação da Palavra e a oração permanecem.
A cela ou o quarto oferece o espaço físico da solidão para a meditação e a oração. O Beato João Soreth diz que a cela material, o quarto, é símbolo da cela interior, para a qual deve ser recolhida a mente dispersa. A solidão material no quarto, sem a cela interior do coração, não vale e não tem sentido. A permanência na cela material ajuda a alimentar em nós a cela interior. Muitas vezes, porém, acontece o seguinte: Carmelitas leigos que vivem no borbulho da vida familiar, sem a cela material, vivem na sua cela interior muito mais do que nós frades que vivemos, cada um, na sua cela material.
São João da Cruz descreve como “recolher-se na cela”, ou seja, como recolher a mente da distração e da alienação; como desapegar-se do apego; como incomodar em nós o acomodado; como perder a vida para poder possuí-la. Assim, aos poucos, o acesso à fonte vai ser desobstruído e a água poderá inundar livremente a vida, e a surpresa da misericórdia de Deus acontece.
Um segundo conselho da Regra: Usar as armas espirituais
Num longo capítulo a Regra descreve como devem ser usadas as armas espirituais do cinto, colete, couraça, escudo, capacete e da espada, para que possamos deixar-nos surpreender por Deus.
O cinto de castidade nos rins (Ef 6,14). Os rins sugerem os sentimentos mais profundos. Devemos “proteger os rins” para não virar joguete de tendências e estímulos contraditórios. O cinto de castidade visa o controle equilibrado dos sentimentos e desejos do coração. Ele ajuda a abrir a porta do coração para que a misericórdia de Deus possa entrar e tomar conta de tudo.
O colete dos pensamentos santos para o peito (Prov 2,11). Pensamento santo vem do Livro Santo. O peito indica o centro dos anseios e do pensamento. O colete do pensamento santo sugere a aquisição de uma consciência crítica frente à ideologia dominante. Ajuda a discernir se o meu sentimento sobre Deus e sobre a misericórdia é verdadeiro, ou se é só um desejo egoísta de auto-promoção.
A couraça da justiça para o corpo (Mt 22,37; Dt 6,5). A Regra usa a palavra justiça como sinónimo de amor a Deus e ao próximo. Trata-se da justiça do Reino de que fala Jesus: “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça!” (Mt 6,33) Ou seja, o amor a Deus deve ser total: de todo o coração, de toda a alma, com todas as forças. Esta entrega total a Deus nos abre para a misericórdia.
O escudo de fé contra as flechas de fogo (Ef 6,6). O capítulo 11 da Carta aos Hebreus dá uma ideia do que vem a ser o escudo protetor da fé. Ele descreve como, no passado, a fé foi a grande força que animou e guiou o povo na sua caminhada. Pois, “sem a fé é impossível agradar a Deus”.
O capacete da salvação na cabeça (Ef 6,15). A Regra associa a esperança com a salvação. Ter o capacete da salvação na cabeça significa ter na cabeça a esperança de que só Jesus pode trazer a libertação. É permitir que Jesus nos liberte de nós mesmos e nos leve a abrir a porta para a misericórdia.
A espada da Palavra na boca e no coração (Col 3,17). A espada é a única arma ofensiva. As outras são de defesa. A “espada do Espírito” é a Palavra de Deus que deve “habitar” na boca e no coração. Habitar significa sentir-se em casa. Sentir familiaridade, liberdade e fidelidade, frente à Palavra de Deus!
A finalidade do uso de todas estas armas é uma só: fazer com que Deus possa penetrar os nossos pensamentos e sentimentos através da fé, da esperança e do amor, “para que tudo seja feito na Palavra de Deus” (RC 19) e, assim, vivamos e irradiemos a misericórdia de Deus.
Um terceiro conselho da Regra: Fazer tudo na Palavra do Senhor
A Regra recomenda por nove vezes a leitura orante da Bíblia: (1) ouvir a Sagrada Escritura durante as refeições (RC 7); (2) meditar dia e noite a Lei do Senhor (RC 10); (3) rezar os Salmos ou horas canónicas (RC 11); (4) participar diariamente da Eucaristia (RC 14); (5) ter pensamentos santos (RC 19); (6) a Palavra deve habitar na boca e no coração (RC 19); (7) agir sempre de acordo com a Palavra de Deus (RC 19); (8) ler com frequência as Cartas de Paulo (RC 20); (9) ter diante de si o exemplo de Jesus como está nos Evangelhos (RC 22).
A Palavra de Deus é capaz de abrir a porta do coração e de nos fazer sentir a surpresa de Deus. Diz a Carta aos Hebreus: “A palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto onde a alma e o espírito se encontram, e até onde as juntas e medulas se tocam; ela sonda os sentimentos e pensamentos mais íntimos” (Hb 4,12). Assim, pouco a pouco, se começa a ver tudo à luz de Deus. Aos poucos, vai aparecendo a surpresa da misericórdia de Deus.
Fr. Carlos Mesters, O. Carm.