A Regra do Carmo
- Do lugar da moradia e da cela dos irmãos (nn.º 5-6) -
5. No que se refere a lugares de moradia, vocês poderão tê-los em localidades solitárias ou onde lhes forem doados, desde que sejam apropriados e adequadas à opção de sua vida religiosa, de acordo com o que o prior e os irmãos, mediante discernimento, decidirem.
6. Além disso, levando em consideração o conjunto do lugar que vocês se propuseram como moradia, cada um de vocês tenha uma cela individual e separada, que lhe será indicada por disposição do próprio prior e com o consentimento dos outros irmãos ou da parte mais madura.
Um pouco de história: sobre o lugar de moradia e a cela dos frades
O número 5 da Regra, que traz normas em torno da escolha do lugar de moradia, não é de Alberto, mas foi acrescentado pelo Papa Inocêncio IV, em 1247, em vista da adaptação da Ordem à nova realidade na Europa. O número 6, que fala sobre a cela dos frades, é do texto original de Alberto de 1207.
Comentando o número 5 sobre a escolha do lugar de moradia:
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Os eremitas, para os quais Alberto tinha escrito a Forma de Vida (Rc 3), moravam na solidão do Carmelo, solidão que marcou sua vida para sempre. Por isso, depois de terem chegado na Europa em 1238, eles continuavam a procurar lugares solitários para morar. Era para poder levar o mesmo tipo de vida que tinham levado na solidão do Carmelo. Aos poucos, porém, foram recebendo lugares de moradia também nas cidades. O que fazer? Podiam aceitá-los? Pois nas cidades não havia aquela solidão. A maioria dos frades era de opinião que se devia aceitá-los. Achavam que devia ser possível viver o ideal do Carmelo não só na solidão do Monte Carmelo, mas também nas cidades barulhentas da Europa. Mas nem todos pensavam assim. Outros opinavam que se devia manter a vida na solidão, fora das cidades.
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Assim, todos queriam manter a solidão do Carmelo, mas nem todos o queriam do mesmo jeito. Discutiram o problema no primeiro Capítulo Geral de 1246, onde venceu a opinião da maioria. Decidiram então pedir ao Papa que adaptasse e atualizasse a Regra à nova situação. O Papa acolheu o pedido e aprovou a adaptação da Regra à nova situação, mandando acrescentar este número 5 sobre a escolha do lugar de moradia.
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A preocupação que motivou o acréscimo do número 5 era dupla: (1) Evitar que os carmelitas fossem vencidos pela tentação de voltar ao tipo de vida dos eremitas antigos ou de querer uma vida afastada do povo nos grandes mosteiros, o que os levaria a abandonar o novo tipo de vida religiosa dos mendicantes que estava começando a nascer naquela época. Por isso, o Papa acrescentou: não só em regiões desertas, mas também em outro canto onde lhes forem doadas, isto é, nas cidades. (2) Evitar que a vida como mendicantes os levasse a perder o "deserto interior" do Carmelo, pois o ideal da Regra tem as suas exigências que devem ser levadas em conta na escolha do lugar de moradia. Por isso, o Papa acrescentou: desde que seja adequado e conveniente com a observância da vida religiosa de vocês.
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A decisão de Inocêncio IV em resposta ao pedido dos frades completava a adaptação da vida dos carmelitas ao novo contexto da Europa e os ajudava na assimilação da nova identidade de frades eremitas e mendicantes, ao mesmo tempo.
Comentando o número 6 sobre a cela dos frades:
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- O número 6 da Regra pede que, "de acordo com a posição do lugar de moradia, cada frade tenha a sua cela separada". Até hoje, lá no Monte Carmelo, se vêem as grutas ou celas, onde viviam os frades. No Monte Carmelo, o terreno era acidentado e as celas eram espeluncas, cavadas na montanha. Antigas pinturas mostram os frades espalhados em grutas pela encosta do Monte Carmelo.
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- Tais grutas podiam ter tudo, menos comodidade. Era vida árdua, dura. Talvez tivessem uma pequena horta ao redor, onde cultivavam alguma verdura. Cada um vivia na sua cela. Para o sustento fazia cestos ou trabalhava a terra. Preparava sua própria comida. Trabalhava, rezava, reunia com os outros nos atos comuns na capela. Nestas celas, eles "meditavam dia e noite na lei do Senhor e vigiavam em orações", como num pequeno oratório pessoal (Rc 10).
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- Mesmo morando em cidades, os carmelitas não podiam esquecer esta sua origem eremítica que era (e continua sendo) a solidão do "deserto" do Monte Carmelo, fonte da sua identidade, lugar do encontro ou reencontro com Deus. Por isso, a Regra insiste em dizer que cada um deve ter a sua própria cela separada. Para a vida carmelitana esta disposição é muito importante. Não se trata de comodismo do fulano que não quer ser molestado. Ter cela própria é para cada um, cada uma, poder realizar de verdade, na prática, (operis veritate) a "vida em obséquio de Jesus Cristo" conforme o rumo e o ideal da Regra do Carmo.
Entre os dois desejos: o deserto e a cidade
Os primeiros carmelitas, aqueles que foram falar com Alberto, viviam na solidão ou no deserto do Carmelo. Aos poucos, ao longo dos anos, este deserto do Carmelo entrou para dentro deles. O Carmelo já não era só um lugar físico. Tornou-se um ideal de vida, uma experiência do encontro com Deus, tão bem expresso por São João da Cruz na Subida do Monte Carmelo. A experiência do deserto marcou para sempre a vida daqueles primeiros eremitas do Monte Carmelo. Quando em 1238 foram morar nas cidades da Europa, abandonaram a solidão física do deserto lá da Palestina, mas levaram consigo a experiência interior do encontro com Deus no deserto do Carmelo. Como manter vivo em nós o deserto do Carmelo? Esta pergunta sempre acompanhou os carmelitas ao longo dos séculos. É a preocupação de não perder a origem, a identidade!
Ora, a grande novidade é esta: chegando na Europa, após alguma hesitação inicial, orientados pelo bom senso e pela decisão do Papa Inocêncio IV, os carmelitas, aos poucos, foram reencontrar o deserto do Carmelo, não na vida dos grandes mosteiros independentes e auto-suficientes, longe das cidades e do povo, mas sim na vida pobre dos Mendicantes, optando pela solidão da margem e do abandono, em que viviam os "menores", os pobres, da época. Foi uma verdadeira re-fundação, uma fidelidade criativa! Reencontraram o deserto da sua origem no deserto das periferias!
Não foi uma opção fácil. Eles viviam entre os dois desejos: o deserto e a cidade, a saudade e a realidade, o grande mosteiro afastado e a pequena fraternidade no meio dos "menores", a vida eremítica antiga e a vida eremítica mendicante. Queriam ser fiéis a ambos. Para ajudá-los a manter o equilíbrio entre os dois desejos, Alberto redigiu os números 4 a 9 da Regra e o Papa Inocêncio IV introduziu aquelas mudanças, de que falamos anteriormente. Os mesmos dois polos nos desafiam até hoje: nossa tradição e os pobres da América Latina.
O texto da Regra diz que cada um deve ter a sua cela, deve viver separado na solidão para ficar só diante de Deus. Na solidão, caem as máscaras, e você se descobre a si mesmo diante dele. Na solidão, você desacostuma de se comparar com os outros. Comparar-se com os outros é uma tentação tão comum, que a gente quase nem se dá conta. Na solidão, você se compara só com Deus, o único que me pode devolver a minha identidade e, assim, tornar-me apto para poder viver em fraternidade. Pois, sem solidão é difícil ter solidariedade. O verdadeiro solitário é sempre um grande solidário, e vice-versa!
Mas não basta a cela separada na solidão material do deserto. O carmelita, a carmelita, deve construir dentro de si a "cela interior" como o diz tão bem o canto do namorado para a sua namorada: "A solidão que tu me deste de presente, eu a cultivo como uma flor". (La solitudine che tu me hai regalato, io la coltivo come un fiore!) Estando assim diante de Deus, desarmados, na solidão do deserto, criamos em nós a receptividade e podemos receber e encarnar em nós a Palavra de Deus, como faziam os primeiros carmelitas, desde aquela mais remota origem no Monte Carmelo, imitando o profeta Elias, Pai e Guia do Carmelo, e Maria, mãe e irmã dos Carmelitas.
Elias e Maria: o encontro com Deus no deserto e em casa
Elias viveu na solidão de vários desertos que marcaram sua vida: de Carit (1Rs 17,5), de Beersheba (1Rs 19, 4), de Horeb (1Rs 19,8). Deserto, não só como lugar geográfico, mas também como experiência interior. Elias teve momentos de não saber, de estar perdido, de ter medo, de achar que tudo estava terminado, de querer fugir e morrer, de pensar só em comer e dormir (1Rs 19,1-5). No deserto, Elias experimentou os seus próprios limites. Não chegou a perder a fé, mas já não sabia como usar a fé antiga para enfrentar a situação nova. O deserto era também o lugar da origem do povo, da volta às fontes em época de crise, onde se recuperavam a memória e a identidade; o lugar para onde o povo escapou para a liberdade, onde morreram os restos da ideologia do faraó, e onde o povo se reorganizou; o lugar da longa caminhada, quarenta anos, onde morreu uma geração inteira; o lugar do murmúrio, da luta, da tentação e da queda; o lugar do namoro, do noivado, da experiência de Deus, da oração. O deserto fez Elias se re-aproximar da origem do povo. Os 40 dias de caminhada no deserto (1Rs 19,7-8) lembram os 40 anos que o povo passou no deserto. O deserto lhe deu condições de perceber o engano da monarquia que manipulava a religião. Solidão não significa isolamento nem individualismo. Pelo contrário. Solidão bem vivida nos abre e nos une com todos os que foram marginalizados e isolados. Tantos! A solidão leva à solidariedade.
De Maria a Bíblia fala muito pouco, e ela mesma fala menos ainda. Maria aparece como a mulher que escuta e descobre, medita e rumina a Palavra nos acontecimentos da vida (Lc 2,19.51). Ela estava dentro da sua casa (cela), quando recebeu a visita do anjo (Lc 1,28). Depois de ter acolhido a Palavra e tê-la encarnado em sua vida (Lc 11,27-28), ela sai de casa para servir: a Isabel, sua prima, grávida de seis meses (Lc 1,39.56); ao casal pobre de Caná na festa do casamento (Jo 2,1-5); a Jesus pendurado na cruz (Jo 19,25-27); aos apóstolos reunidos no cenáculo (At 1,14). Ela canta a Deus, quando reconhece a presença da palavra nos fatos da vida (Lc 2,46-55).
Carlos Mesters, Ao redor da fonte