Da cela do prior na entrada do lugar de moradia (n.º 9)

A Regra do Carmo

- Da cela do prior na entrada do lugar de moradia (n.º 9) -

 

9. A cela do prior deve localizar-se junto da entrada do lugar, para que ele seja o primeiro a ir ao encontro dos que vierem a esse lugar; e, depois, todas as coisas que devem ser feitas aconteçam de acordo com o seu critério e a sua disposição.

Um pouco de história: sobre a cela do prior na entrada do lugar de moradia

O número 9 da Regra recomenda: a cela do prior deve ficar junto da entrada do lugar de moradia, de modo que seja ele o primeiro a acolher os que vierem a esse lugar e, de acordo com a sua decisão e disposição, se façam depois todas as coisas que devem ser feitas. Por de trás desta recomendação há três coisas que ajudam a entender melhor o seu significado e a sua atualidade para nós hoje:

  • Refere-se à situação geográfica do Monte Carmelo - As celas dos frades se espalhavam pela encosta da montanha, às vezes, bem distantes, uma da outra. Por isso, os que vinham visitar os frades deviam apresentar-se, primeiro, ao prior. Ele orientava as pessoas, informava sobre onde morava tal e tal frade, e indicava o caminho. Era para impedir enganos, mal-entendidos, perda de tempo e cansaço inútil, subindo e descendo a­queles caminhos estreitos e difíceis do Monte Carmelo. Favorecia o acolhimento e a hospitalidade.
  • Refere-se à aceitação de novos candidatos - A expressão os que vierem a esse lugar pode referir-se também às pessoas que vinham ao lugar não como visitantes, mas como candidatos com o desejo de serem membros da comunidade. Antes, na vida eremítica tradicional, os candidatos eram atraídos pela fama de santidade deste ou daquele eremita. Agora, no novo tipo de vida religiosa assumido pelos carmelitas, a aceitação de novos membros tornava-se uma tarefa, não deste ou daquele frade, mas sim da comunidade. Os que vinham ao lugar já não procuravam um determinado fulano, mas sim o Carmelo, a fraternidade. Procuravam o ideal de vida, expresso e vivido pela comunidade. Por isso, os novos candidatos, que chegassem ao lugar, deviam apresentar-se ao representante da comunidade que era o prior. Em nome da comunidade, o prior decidia o que devia ser feito para encaminhar os candidatos. Esta determinação impedia o retorno para a vida eremítica antiga e mantinha o grupo no novo rumo das fraternidades a serviço dos "menores" (pobres).
  • Refere-se à visita de peregrinos que andam pela vida em busca de Deus - O peregrino que busca a Deus deve poder encontrar uma resposta para a sua busca nas pessoas que vivem em obséquio de Jesus Cristo. Por isso, a comu­nidade, enquanto comunidade, deve ter um rosto definido que responde à busca destes peregrinos, e alguém da comunidade, no caso o prior, deve representar e apresentar este rosto. E não só. O peregrino ao visitar a comunidade lembra aos frades que eles mesmos também são e devem ser eternos peregrinos em busca do Absoluto de Deus. Os peregrinos visitantes nos ajudam, para que não nos instalemos ou nos acomodemos em ritos e observâncias que, talvez, dêem um sentimento de segurança humana, mas que, no fundo, interrompem a peregrinação em direção de Deus.

Resumindo. Antes, o centro de atração era a fama de santidade do eremita. A ele os outros acorriam para ouvir a sua doutrina e aprender dele como viver em obséquio de Jesus Cristo. Cada um procurava o seu mestre. Agora, quando alguém chega no assentamento dos carmelitas do Monte Carmelo, mesmo sendo atraído pela fama deste ou daquele frade, ele encontra não um fulano, mas sim uma comunidade. O que vale já não é a fama de um ou outro frade, mas sim o tipo de vida que se leva na comunidade de acordo com a nova forma de vida, rascunhada pelos primeiros carmelitas, redigida por Alberto e aprovada pelo Papa Inocêncio IV.

Observações sobre os números 4 a 9 da Regra

Os números 4 a 9 contêm as determinações que oferecem os critérios de como deve ser organizada a infraestrutura da vida no Carmelo, a saber: a fraternidade deve ser coordenada por um prior, a quem os outros prometem obediência (Rc 4); o prior junto com os frades deve zelar para que se faça a escolha do lugar correto para a moradia (Rc 5); deve cuidar para que os frades tenham cada qual sua cela separada (Rc 6), não fiquem mudando de comunidade (Rc 8), nem continuem comendo no próprio quarto (Rc 7); o prior ainda deve saber encaminhar a aceitação de novos membros (Rc 9). São determina­ções simples e concretas, apropriadas para a situação do começo do século XIII. Elas asseguravam a base material para a realização do ideal de fraternidade da vida carmelitana que vai ser descrito nos números 10 a 15.

Comparadas com a situação das nossas comunidades no século XXI, estas determinações aparecem como normas curiosas de uma cultura que já não existe. Mas o que importa não é a letra da lei, mas sim o espírito, pois a letra mata, mas é o espírito que comunica vida (2Cor 3,6). Como pudemos verificar, o espírito destas determinações revela a preocupação do legislador em garantir, através da observância destas normas, a fidelidade ao novo estilo de Vida Religiosa, esco­lhido e assumido pelo grupo que foi falar com Alberto. Era um estilo diferente, que combinava a vida de oração contínua dos antigos eremitas com as novas formas de Vida Religiosa que, naquele tempo, estavam aparecendo na Europa e que, aos poucos foram recebendo o nome de mendicante.

Ora, para que o grupo dos carmelitas pudesse firmar-se no novo estilo de Vida Religiosa, diferente do que tinha sido o costume deles até àquele momento, não bastava só a boa vontade. Era necessário encontrar estruturas que canalizassem as coisas e juntassem esses dois tipos de Vida Religiosa (oração a Deus e serviço ao povo) numa unidade. Era este o objetivo dos números 4 a 9 da Regra: firmar os frades no novo rumo. Foi a obediência a estas normas que, no fim daquele século XIII, salvou a Ordem de perder sua identidade.

O perigo era duplo. Alguns, levados pelo medo de perder-se no mundo urbano das cidades da Europa, poderiam querer voltar para o estilo antigo da vida eremítica errante ou para a vida monacal nos grandes mosteiros, distante dos pobres. De fato, anos depois, na segunda metade do século XIII, a tensão interna da Ordem foi tanta, que houve um superior geral, Nicola o francês, que convidou os confrades a voltar ao antigo estilo de vida lá no Monte Carmelo. Outros, levados por um desejo exagerado de atualização e de adaptação à nova realidade da Europa, tão diferente da vida no Monte Carmelo, querendo desfazer-se de observâncias obsoletas, poderiam correr o perigo de perder de vista o ideal carmelitano.

Mas a obediência à Regra foi mais forte e ajudou a superar a crise e a evitar o perigo, pois a Regra ajudou a criar uma infra-estrutura de vida que impediu o retorno ao passado e afastou a dis­persão no presente. Ela obrigava os carmelitas a se manterem no rumo da vida religiosa renovada, fiel à sua origem e fiel à realidade do povo, dos menores, e às exigências da Igreja que se renovava.

Fidelidade ao espírito da Regra e não à letra

A partir da aprovação oficial da Regra em 1247, a história recomeçava. Um caminho sem retorno se abria para o futuro. Mas as tensões internas continuavam, pois elas não se resolvem por decreto. Desde o seu início, a Família Carmelitana carrega dentro de si esta dupla tendência: o desejo de soli­dão, de oração, de Deus, do absoluto; e o desejo de servir, de seguir a Igreja que se renova, de es­tar do lado dos pobres, de ser mendicante. Integrar na unidade esta dupla tendência, aparentemente contraditória, é a forma de ela ser fiel a si mesma.

No século XIII, a Ordem veio do Oriente para a Europa, passou da solidão no deserto para a mendicância na cidade, da vida só de oração e de trabalho manual para o apostolado nos ambientes mais diversos. No século XX aconteceu algo semelhante. Os carmelitas vieram da Europa para a América Latina, do Oriente para o Ociden­te. Vale a pena lembrar alguns critérios que nortearam a adaptação dos primeiros carmelitas no novo contexto de vida na Europa do século XIII, pois eles conservam uma grande atualidade: 1. Realismo que soube relativizar o secundário, mas não abria mão do essencial; 2. Vontade de estar do lado dos menores, dos pobres da Europa; 3. Von­tade de viver em fraternidade numa forma renovada de vida religiosa; 4. Fidelidade à oração e à mística. Foi uma verdadeira re-fundação, fidelidade criativa, de que tanto se fala hoje em dia.

Vários outros pontos chamam a nossa atenção na atuação deste grupo fundador da Família Carmelitana:

  • A extrema rapidez da difusão dos carmelitas no século XIII, nos vários países da Europa - Em pouco mais de 60 anos, desde 1238 até o ano 1300, eles fundaram mais de 160 conventos e se espalharam por praticamente todos os países da Europa. Na mesma época nasciam e cresciam os Franciscanos, os Dominicanos, os Servitas e tantas outras Ordens novas. No meio deste mundo em mudança, os carmelitas souberam apresentar o ideal do Carmelo de uma forma que fosse uma resposta aos anseios da juventude da época. Do contrário, não se explica este rápido cresci­mento. Eles souberam apresentar o ideal carmelitano para os Menores do seu tempo. Estamos na América Latina desde a segunda metade do século XVI. A restauração de algumas províncias começou no começo do século XX; de outras, depois da guerra de 1940-1945. Será que tivemos o mesmo ardor e idealismo?
  • A fidelidade à origem e a coragem de viver na tensão entre a dupla exigência - Viver na contemplação e viver a serviço dos Menores. Esta tensão se expressa na história dos primeiros quarenta anos entre 1207 e 1247 e se reflete na história que seguiu depois, durante a segunda metade do século XIII. A tensão encontrou a sua expressão histórica na coragem de Simão Stock (1251) que assumiu a nova caminhada, e na decisão de Nicola o Francês (1266) de convidar todos os confrades para voltar para o Monte Carmelo. Ambos eram Superiores Gerais da Ordem.
  • A criatividade de reencontrar o deserto do Carmelo entre os "Menores" da Europa - Não se deve considerar a adoção da forma de vida dos Mendicantes como um abandono parcial do ideal primitivo, mas sim como uma releitura radical (raíz) deste mesmo ideal dentro da nova situação na Europa. A decisão de adotar a vida mendicante é a resposta de fidelidade ao que Deus estava pedindo. Os nossos primeiros confrades deixaram-se questionar pela Tradição e pelos Pobres, e procuraram ser fiéis a ambos. Souberam re-encontrar o deserto do Carmelo na pobreza das periferias da época.
  • A sabedoria do patriarca Alberto - A Regra é feita de tal maneira que ela conserva os valores eremíticos de sempre, mas os coloca a serviço da Igreja que se renova. Os Carmelitas tinham a missão de trazer a tradição mística do passado para dentro do novo mundo que estava surgindo naqueles séculos XII e XIII. Sempre que, ao longo da nossa história, a dimensão eremítica é esquecida ou mal acentuada, surgem, de dentro da Ordem, pessoas ou movimentos que chamam a atenção para esta dimensão da nossa vida. Graças a Deus!

É evidente o significado de tudo isto para nós carmelitas, hoje, na América Latina. Os nossos primeiros confrades que foram falar com Alberto, nos provocam e incomodam. Eles são realmente os fundadores que até hoje nos desafiam a encarnar com a mesma criatividade o mesmo carisma na nossa realidade. A Família Carmelitana como um todo permaneceu no rumo indicado pela Regra de Alberto. Permaneceu fiel não só à tradição do passado, mas também à realidade nova do pobre, dos menores, e da Igreja que se renovava. Pois sempre reapareceram e continuam aparecendo frades que voltam à vida eremítica. São lembretes do Espírito, apelos à consciência de todos nós, para que não esqueçamos nossa origem, nem percamos nossa identidade e missão dentro da Igreja.

Carlos Mesters, O. Carm.

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