A Regra do Carmo
- Da revisaõ de vida e da correcção fraterna (n.º 15) -
15- Da mesma maneira, nos domingos ou em outros dias caso for necessário, vocês devem tratar da observância na vida comum e do bem-estar espiritual das pessoas. Igualmente, nessa mesma ocasião, as transgressões e culpas dos irmãos, que por ventura forem encontradas em algum deles, sejam corrigidas mediante a caridade.
Um pouco de história: sobre a revisão semanal
A revisão semanal tal como é recomendada pela Regra era uma das características da Vida Religiosa dos mendicantes. Nos grandes mosteiros da época existia, desde séculos, a prática chamada "collatio". Todas as semanas, o Abade reunia a comunidade e lhe fazia uma palestra, chamada collatio, na qual ele colocava para os outros o seu pensamento e os instruía no caminho espiritual e nas tradições da vida monacal. Muitas destas collationes foram conservadas. As Collationes de Cassiano, por exemplo, são de uma riqueza enorme. Nelas encontramos a tradição e a espiritualidade que animava a vida dos monges.
A Regra do Carmo, porém, não impõe a "collatio", mas sim a revisão semanal e a participação de todos na discussão e na solução dos problemas da comunidade. Nesta diferença, aparentemente insignificante, transparece o novo estilo de Vida Religiosa dos primeiros carmelitas. Através da prática da revisão semanal, eles iam adquirindo cada vez mais o jeito próprio dos mendicantes e iam se tornando fraternidades orantes e proféticas a serviço dos "menores". Eis as características da revisão semanal recomendada pela Regra:
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A ordem de se fazer a revisão semanal não é dada ao superior, mas sim a todos: é a comunidade que assume o seu próprio destino.
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A revisão semanal deve ser feita, de preferência, nos Domingos. Isto é, no dia em que não há jejum (Rc 16). É o dia em que se comemora a ressurreição de Jesus. Pois, a revisão não pode ser um encontro pesado, mas deve ser alegre, cheio de alegria pascal.
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A revisão é feita no lugar da reunião em comum, isto é, na capela, onde se celebra a Eucaristia, onde se mantém viva a memória da doação de Jesus. No começo, não havia outro lugar comunitário. Nas ruínas da primeira capela lá no Monte Carmelo, ainda se vê o banco de pedra ao longo das paredes, onde os frades sentavam durante a reunião.
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A prática da revisão semanal faz com que eles entrem num processo em que todos se responsabilizam por todos e por cada um. Faz crescer entre eles a consciência da igualdade e da corresponsabilidade: todos são responsáveis pela observância da Regra. Um por todos, todos por um!
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A correcção das faltas que ocorre durante a revisão semanal deve ser feita com caridade. O amor é o critério para se reencontrar novamente o equilíbrio perdido da fraternidade.
A revisão semanal recomendada pela Regra
Quatro pontos merecem uma breve explicação: (1) a preservação da ordem (custodia ordinis), (2) o bem-estar das pessoas (animarum salute) e (3) a correcção fraterna (4) que deve ser feita com caridade (caritate media):
A preservação da ordem. A expressão custodia ordinis não indica a Ordem do Carmo, nem a ordem no sentido de disciplina, mas indica a organização da vida em comum. Trata-se do bom funcionamento do conjunto, da fraternidade. Esta tarefa, não é dada ao superior, mas a todos os frades. Todos devem assumir o funcionamento do conjunto e são responsáveis por ele. Nos outros números, sempre se indica o responsável pelas coisas que são aconselhadas. Geralmente, é o superior e a maioria qualificada, ou algum responsável indicado pelo Prior. Mas aqui, é a comunidade como um todo que é responsabilizada.
Uma vez por semana, eles devem tratar deste assunto e ver se a sua vida está dentro do objectivo, que eles mesmos se propuseram quando foram falar com Alberto. Devem verificar, por exemplo, como está a permanência nas celas, como está sendo feita a comunhão de bens, como está sendo celebrada a Eucaristia diária. Devem verificar se tudo está sendo vivido de acordo com o objectivo principal da sua vida: ao serviço do povo, ao lado dos "menores", ao serviço da renovação da Igreja, como seguimento de Jesus.
O bem-estar das pessoas. A expressão animarum salute não significa "salvação das almas", no sentido de trabalho apostólico. Aqui, salute indica "salvação" no sentido de saúde, isto é, o bem-estar de cada um. Na revisão semanal, eles devem tratar não só do bom funcionamento do conjunto (vida comum), mas também do bem-estar de cada membro da comunidade. Isto é, devem interessar-se não só pela fraternidade em geral enquanto testemunho para fora, mas também pela fraternidade para dentro, pelo irmão, pela irmã, bem concretamente, para que o relacionamento mútuo se aprofunde e se torne transparente .
A correcção fraterna. Devem tratar também de culpas e excessos. Pois, inevitavelmente, caso existirem, tais defeitos vão aparecer na revisão semanal. A comunidade reunida deve descobrir estas falhas e, através de uma discussão aberta, deve procurar corrigi-las, usando como directriz a caridade. Na correcção fraterna, cada um deve sair da sua cela, do seu pequeno santuário pessoal, deve sair de si mesmo e ir em direcção ao outro. É uma ascese difícil. Não se trata de ataque, mas de entrega e doação.
Usar a caridade. O texto em latim diz caritate media. Isto pode ser traduzida no sentido de que a caridade deve ser o meio que se usa para corrigir as faltas. Ao mesmo tempo, a expressão evoca o que se disse anteriormente falando do oratório que deve ser construído no meio das celas. Ou seja, no centro de tudo deve estar a caridade, o amor, que nasce da sua fonte que é a Eucaristia a ser celebrada diariamente no oratório.
E aqui vale a pena lembrar o texto da carta de Paulo aos Coríntios, onde ele tenta descrever o que vem a ser o amor na vida de uma pessoa ou de uma comunidade. Segue aqui o texto que já foi lido durante o encontro, mas agora o apresentamos misturado com algum comentário (1Cor 13,1-13): "Posso falar todas as línguas" (1Cor 13,1), posso ter muita comunicação para anunciar a Boa Nova; mas sem o amor, nada sou! "Posso ter o dom da profecia" (1Cor 13,2), posso fazer grandes denúncias e animar o povo; mas sem o amor, nada sou! "Posso ter o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência" posso ser grande teólogo e ter muita consciência crítica; mas sem o amor, nada sou! "Posso ter toda a fé a ponto de transportar montanhas" (1Cor 13,2), posso ter a doutrina certa e uma fé milagrosa; mas sem o amor, nada sou! "Posso distribuir os meus bens aos famintos" (1Cor 13,3), posso fazer opção pelos pobres e dar tudo a eles; mas sem o amor, nada sou! "Posso até entregar o meu corpo às chamas" (1Cor 13,3), posso ser preso e torturado; mas sem o amor, "isto nada me adiantaria" (1Cor 13,3).
Todas estas coisas, enumeradas por Paulo e tão importantes para a vida da pessoa e da comunidade, não conseguem definir o amor, não se identificam com o amor, nem o esgotam. Apenas o revelam. O amor é um dom que ultrapassa tudo isto! O que é o amor? Paulo não responde, mas cita a letra de um canto da comunidade, onde oferece uma chave para cada um, cada uma, avaliar se na sua vida existe ou não este amor (1 Cor 13,4-8). Eis a letra do canto: O amor é paciente, O amor é prestativo. Não é invejoso, Não se ostenta, Não se incha de orgulho; Não faz nada faz de inconveniente, Não procura seu próprio interesse; Não se irrita, Não guarda rancor, Não se alegra com a injustiça, Mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, Tudo crê, Tudo espera, Tudo suporta, O amor jamais passará!
Observações sobre os números 10 a 15 da Regra
Os números 10 a 15 são o miolo, o coração da Regra, as cinco pilastras da vida carmelitana. Oferecem a estrutura básica dentro da qual deve ser vivida a nossa espiritualidade:
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Oração individual.
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Oração em comum.
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Partilha dos bens.
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Eucaristia diária.
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Revisão semanal.
Há uma coisa curiosa comum em cada uma destas cinco pilastras, que revela, ao mesmo tempo, a radicalidade e a humanidade da Regra. Em cada um destes cinco pontos, alguma coisa é relativizada:
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Permanecer na cela, se não estiver ocupado em outra coisa justificada (Rc 10).
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Rezar o Ofício, se souber. Se não souber, pode rezar o Pai Nosso (Rc 11).
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Partilhar e distribuir os bens, mas conforme as necessidades e idades de cada um (Rc 12).
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Não podem ter nada, mas podem ter jumento e galinhas (Rc 13).
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O oratório deve ser construído no meio das celas, se for possível (Rc 14).
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Devem celebrar a Eucaristia todos os dias, se for possível (Rc 14).
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Devem fazer revisão nos domingos ou em outros dias, caso seja necessário (Rc 15).
Outros aspectos, porém, não são relativizados, a saber:
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Meditar e vigiar sempre, dia e noite.
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Rezar em comum.
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Comunhão de bens, não ter propriedade pessoal.
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Ter Eucaristia, ter lugar de oração.
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Ter revisão semanal.
Com outras palavras: o ideal é permanente e absoluto. A forma de realizá-lo é relativizada. Deste modo, a Regra impede que a pessoa busque a sua segurança na observância perfeita das normas, pois é exactamente destas normas que se diz: "Se for possível.....; se puder....; conforme for....". Ou seja, a Regra aponta vários caminhos possíveis para se caminhar em direcção ao ideal. Há várias maneiras de realizá-lo. O ideal é muito simples e despretensioso, profundamente revolucionário e altamente comprometedor com relação ao sistema da sociedade e da Igreja. É nesta perspectiva revolucionária que a Regra insiste e não abre mão nem a relativiza. Ela abre mão de pequenas coisas, mas não abre mão da inspiração fundamental: ser uma fraternidade orante e profética ao serviço do povo, dos "menores".
Carlos Mesters, O. Carm.