Nada será como dantes
A pandemia do coronavírus anda por aí, associada a outra não menos grave: a pandemia do medo. Ignoramos o que nos espera em termos de sofrimento, de morte, de devastação económica e social, de alteração do nosso estilo de vida.
Bastou um micróbio para que as nossas agendas, prioridades, programações fossem por água abaixo. Em face da vida, da saúde, da família, tudo ficou relativizado. Confiávamos no poder da ciência e da tecnologia, no progresso imparável, na força do dinheiro e das armas, noutros deuses falsos, mas surge sorrateiramente o novo coronavírus, põe à mostra os nossos pés de barro e obriga-nos a fazer o impensável: deixar a normalidade e adotar comportamentos totalmente opostos aos que tínhamos dias antes. Nada mais.
Nunca nos tínhamos visto noutra assim e descobrimos como era bom estarmos juntos. Há quanto tempo não falávamos com a mãe, com os filhos, com os avós, ou não chamávamos pelo telefone aquela pessoa que há muito não víamos…
Quem diria que era possível alterar os nossos hábitos de consumo e com isso melhorar substancialmente todos os indicadores ambientais!
Ou que viéssemos a perceber o que desde sempre ouvimos: que as crises e os problemas podem tornar-se imponentes oportunidades. As mais belas páginas da Bíblia foram escritas em tempos de êxodo, exílio ou perseguição. Os nossos antepassados também sentiram na pele o encerramento ou a quarentena em diversas alturas, algumas – não o esqueçamos – em épocas não muito recuadas. As dificuldades nunca amedrontaram os que tinham posto a sua confiança em Deus, um Deus tão fortemente comprometido com a sorte dos seres humanos, que até se fez um deles.
Oportunidade, esta, para tomarmos consciência na nossa vulnerabilidade! A fragilidade da nossa organização social, dos nossos sistemas de saúde, da existência de cada um de nós, independentemente do seu poder ou estatuto.
Oportunidade para compreendermos que “nenhum homem é uma ilha” e que ou nos salvamos juntos ou nos afogamos todos estupidamente. Alguém disse que “esta terrível experiência que estamos a viver constitui apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as alterações climáticas”. Não seria difícil multiplicar os exemplos.
Fizemos descobertas lindas. Que a empatia e o sentido comunitário não estão mortos na nossa Humanidade, apenas hibernados. Em vez de cada um se refugiar no “salve-se quem puder”, a crise fez vir ao de cima o melhor das pessoas. Os cristãos viram na solidariedade um instrumento privilegiado para tornarem visível o carinho e a proximidade desse Deus que dizem ser Amor. Fecharam-se templos, mas de modo algum se fechou o coração dos crentes. Como se lia numa faixa estendida por chineses, em Bérgamo, na Itália, “somos ondas do mesmo mar, folhas das mesmas árvores, flores do mesmo jardim”.
Nestes dias tivemos a prova de que “a beleza é que salva o mundo”. O que nos resgata da selvajaria é a Arte, como se vê pelo aguaceiro de vídeos com atuações musicais, pela multidão de pessoas soltando canções à janela, pelos humoristas que subiram à ribalta das redes sociais, pelas listas de livros para ler e de filmes para ver em família.
Com tudo isto reverdece a esperança de que levaremos de vencida outros vírus piores que infestam a Humanidade: a violência, a insensibilidade, o egoísmo…
Já não é pouco.
Onde está Deus no meio de isto tudo?
Segundo o profeta Oseias, Deus leva o seu povo ao deserto para lhe falar ao coração. É assim que vejo a “Quarestena” que atravessamos. Tempo para orar, para conviver, para descansar, para refletir sobre muita coisa.
Bastaram poucos dias para assistimos ao fecho da nossa civilização: viagens, comércio, indústria, serviços, cessaram quase por completo; milhões de pessoas tiveram de recolher a casa; o número de infetados e de mortos não para de subir.
Os cristãos cedo aprenderam a lidar com epidemias. Nos meados do século III, Dionísio, bispo de Alexandria, enviou uma mensagem de Páscoa em que fala de uma delas: “Esta enfermidade surgiu do nada; é uma coisa mais aterradora do que qualquer desastre”.
Embora os caminhos de Deus sejam misteriosos, sabemos que Ele não causa o mal, mas sempre tira dele algum bem. Podemos confiar no seu amor pelas suas criaturas, por cada um de nós. Ou não tivéssemos visto o coração de seu Filho, Jesus Cristo. Por onde quer que Ele passasse levava o amor de Deus aos cegos e aos surdos, aos epiléticos e leprosos, aos aleijados ou doentes crónicos. E mandava à sua gente que fizesse o mesmo.
A exemplo dele, os cristãos deram a vida pelos irmãos, sobretudo em épocas de chagas e de epidemias. Cuidaram dos enfermos, enterraram os mortos, consolaram os aflitos, enxugaram as lágrimas, por vezes com grande sacrifício e risco da própria vida. Damião de Molokai ou Teresa de Calcutá são apenas dois exemplos.
Estes nossos dias também ficarão na história como um tempo em que homens e mulheres realizaram admiráveis feitos de coragem e de devoção ao próximo. Vejam esses médicos e enfermeiros, esses padres e religiosas, essas forças de segurança e de socorro, essas legiões de leigos que, nas variadas frentes, fizeram “disparar” o voluntariado. Ignoramos os nomes, mas sabemos que no meio dessa gente estão na forja muitos heróis e santos.
Difíceis tempos estes em que os filhos visitam os pais, e os amigos procuram os amigos, mas ficam a dois metros, com medo de os infetarem. Estranhos dias que nos deixam sem abraços, sem beijos, sem carícias.
Embora nos doa o coração, tem de ser. Mas lá por mantermos um “distanciamento social” ou comunicarmos apenas eletronicamente, a proximidade, a ternura, a compreensão não baixam de intensidade.
Já percebemos que “pandemia” vem de duas palavras gregas: “pan”, que significa “todos”, e “demo”, que significa “povo” ou “população”. A pandemia pode atingir todas as pessoas, globalizou-se. Requer, por parte de todos nós, uma pandemia de oração, de carinho, de generosidade, de amor. Uma “erupção” pandémica de responsabilidade. Um “contágio” pandémico de esperança.
Onde está Deus no meio de isto tudo? Está onde sempre esteve: com o ser humano. Já um salmista rezava: “Nas tuas mãos está o meu destino”. Se Deus deixasse de nos amar, ficaria desempregado. Está, pois, aí respeitando a liberdade humana: do mau uso da mesma derivam por vezes situações nefastas, mas reside também nela a solução das mesmas, se não nos faltar a necessária consciência e responsabilidade.
Onde está Deus no meio de tudo isto? Está precisamente aí, a inspirar, a provocar essa nossa responsabilidade, bem como o nosso altruísmo, o nosso apoio de uns aos outros. A resposta a essa pergunta, afinal, é sempre antiga e sempre nova: Onde há caridade e amor, Deus está aí.
Abílio Pina Ribeiro, cmf
Saberá a Primavera
Que nós estamos à espera?
Ousará atravessar
as nossas ruas desertas,
pendurando nas varandas
a magia das glicínias?
Deixará o seu sorriso
esculpido em nossos prados,
pintando os nossos jardins
de verde, vermelho e branco?
Saberá a primavera
que nós estamos à espera?...
Quando vier e não nos vir
nem nas ruas nem nos bairros,
quando não ouvir no parque
o passo dos anciãos,
nem a barulheira alegre
das crianças a brincar,
julgará que se enganou
na data do calendário,
que desde sempre é em março?
Saberá a primavera
que cá estamos à espera?
Quando rebentar alegre
enchendo de pontos brancos
as lindas amendoeiras,
e não vir a Virgem Santa
passear no seu andor,
e ninguém lhe atirar pétalas
nem a proclamar “Guapa!”;
quando vir guardado o incenso,
o trono, a cruz e o pálio,
e Cristo, como nós todos,
em sua casa fechado,
sem o deixarem sair
mesmo no dia de Páscoa...
Pensará a primavera
que se terá enganado?
Escutará os lamentos
de quem não vai ao emprego,
de quem trabalha a desoras
para ajudar seu irmão,
de quem expõe sua vida
em silêncio e esquecido?
Escutará cada noite
os vivas, os aplausos
que damos com alegria
ao pessoal da saúde?
Pensará a primavera
que se terá enganado
e arrumará suas cores
até daqui a um ano?
Saberá a primavera
que nos proibiram o beijo,
que nos proibiram o abraço?
Saberá a primavera
que até sonhamos com ela?
Assomados à varanda da Esperança,
esperamos que nos ofereça o milagre
de vermos florir a vida
que hoje nos foge das mãos...
Sê bem-vinda, primavera!
Vem pintar de azul-celeste
esta terra em que moramos.
Não sentis que neste mundo
algo novo está brotando?
Talvez seja a primavera,
sabe que estamos à espera…
(Lucía Carmen de la Trinidad, Carmelita descalza. Antequera)