2º Dia: Ser profetas de misericórdia e de reconciliação (8 de Julho)
Ontem vimos que o rosto de Deus, o seu outro nome, é a misericórdia. Deus é amor misericordioso, perdão incondicional, acolhimento sem reservas, sempre renovado. Se da parte de Deus a misericórdia está assegurada em Jesus Cristo, seu Filho, da parte do homem é preciso recebê-la. Para isso há que sentir necessidade dela, pedi-la e aceitá-la na nossa existência como norma do nosso agir.
O problema, porém, para o homem de hoje, consiste em aceitar a misericórdia, como diz S. João Paulo II: “A mentalidade contemporânea parece opor-se ao Deus de misericórdia, tendendo a separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem, que não deixa espaço para ela” (DM 2). Esta mentalidade vem de Nietzsche (†1900, contemporâneo de S. Teresinha do Menino Jesus) que rejeita Deus e principalmente Cristo, em cujos conceitos fundamentais – o amor, a compaixão, a humildade, a abnegação, o espírito de sacrifício, a cruz, a consciência de pecado – vê uma pura moral de escravos, repleta de ódio à vida, que há que erradicar por completo, para enfatizar a vontade de domínio dos homens superiores, para os quais nada é verdade, tudo se permitindo, sendo eles mesmos a criar os valores que mais lhes convêm.. Uma visão que já levou a duas guerras mundiais e teima em persistir.
É precisamente nesta autonomia unilateralmente interpretada como pura afirmação individual da própria subjetividade, elevada a valor absoluto, que consiste o pecado. Por isso o homem contemporâneo tem tanta dificuldade em o reconhecer, considerando-o um atentado à própria dignidade e liberdade, maturidade e independência. Ora, como nota S. Maria Madalena de’ Pazzi, é precisamente o não reconhecimento do pecado que impede de receber a misericórdia de Deus. Diz ela: “Vi a Santíssima Trindade repleta de misericórdia, que infundia no Verbo humanado, o qual, através das suas cinco chagas, a derramava sobre todas as criaturas, de tal modo que todas por ela eram cobertas, tanto os justos, como os pecadores. Essa misericórdia cobria todos os seus pecados, exceto os de malícia e obstinação, mas não cobria os daqueles em que não tinham conhecimento e arrependimento do pecado. Mas àquelas que o tinha, essa divina misericórdia cobria-os e consumia-os em si, tal como uma pequena gota de água no oceano, de modo que já não se via o pecado, mas apenas misericórdia” (II,95).
Por isso a Palavra de Deus convida-nos hoje a reconhecer o pecado. Antes de mais o próprio pecado: “Converte-te ao Senhor, porque foram os teus pecados que te fizeram cair. Vinde com palavras de súplica” (Os 14,2-3), dizendo como David: “Compadecei-vos de mim, ó Deus, pelo vosso amor (hesed), segundo a multidão das tuas misericórdias (rahemim) apaga os meus pecados. Lava-me de toda a iniquidade e purifica-me do meu pecado” (Sl 51,3-4). Mas também do pecado que reina no mundo, sob a forma de “ódio e inveja, de maldade e malícia” (I, 228), como Jesus diz: “Envio-vos como ovelhas para o meio de lobos. Sede, pois prudentes como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10,16). Como? Tapando os ouvidos como as serpentes, para não responder a mal com o mal, a injúria com injúria, a ofensa com ofensa; sendo humildes, olhando apenas para o Senhor (Sl 58,5; Sir 21,2; Mq 7,17); mantendo-se livres de toda malícia, perseverando unidas e vigilantes em oração no seio da Igreja, depondo todo o pecado e divisão, intercedendo pelos outros, levando-lhes na boca o Evangelho da paz (cf. Gn 8,9.11; Lv 5,7, etc;. Jr 31,28; Ct 2,14; 6,9; Os 7,11; Na 2,8)
A quem o faz Deus promete uma vida nova, que dá por meio do seu Espírito. Como pede David no Salmo: “Criai em mim, ó Deus, um coração puro, e fazei nascer dentro de mim um espírito firme. Não me afasteis do vosso rosto e não retireis de mim o vosso Espírito Santo” (Sl 51,12s). É esta a primeira das quatro passagens em que no Antigo Testamento aparece o nome da terceira pessoa da Santíssima Trindade, o Espírito Santo (cf. Is 63,11.12; Sb 9,17). Ele é a remissão dos pecados, o princípio da vida nova, da nova criação (Ex 18,31; 36,26-27; 37,13), da salvação, reconciliação e paz (Is 11,2-9; 61,1-11). Foi que o Senhor no dia de Páscoa infundiu nos seus discípulos para continuarem a sua missão de reconciliação e de paz, levando a todos a salvação: “A paz esteja convosco! Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós. Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos.” (Jo 20,21-23). É Ele, o Espírito, que de nós fará profetas da misericórdia e da reconciliação, à imagem do profeta Elias (Sir 48,18), pois “a primeira missão da Igreja é introduzir todos no grande mistério da misericórdia de Deus contemplando o rosto de Cristo” (MV 25).
A misericórdia e o perdão, porém, só podem ser acolhidos por aqueles que, depondo todo o ódio e inveja, espírito de discórdia e divisão e falta de perdão, se reconciliam com o Pai e os irmãos: “Se ao trazeres a tua oferta ao altar, te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão” (Mt 5,23-24). Foi o que Maria fez junto à cruz. Tal como o seu Filho que disse: “Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem” (Lc 23,24), também Maria, a mulher do coração novo, com um espírito firme (Sl 51,12), perdoou, associando-se assim à obra redentora do Seu Filho, sendo por Ele constituída Mãe da Igreja e da humanidade. E desde então todos a ela acorrem, invocando-o em todas as suas necessidades, em especial quando se sentem oprimidos pelo pecado, pois sabem que, como diz S. Maria Madalena de’ Pazzi, “nela não há nenhum reparo de justiça, mas apenas misericórdia, porque é Mãe toda de misericórdia” (I,199s). Como ela, animados pelo Espírito Santo e deixando-o falar na nossa vida, atitudes, gestos e palavras, sejamos profetas de misericórdia e de reconciliação.